sábado, fevereiro 19, 2005

Aqui

(...)Há um cântico puro que sai da igreja do lado. Irmãs negras a pedirem coisas a Deus
-pai, filho e espírito santo

e toda a fé move o mundo.

Moçambique.




O cântico que lhes sai da boca protege-nos do que quer entrar pelas portas, pelas janelas
- mamã Inês, mamã


Há um recolher de corpos obrigatório ás 22h30, há uma padaria, há laudes ás 6.
Há meninos pretos que me agarram a saia e querem brincar
-mamã Inês, mamã Inês

e querem fazer roda, querem subir árvores.

Há leite a ser distribuído por estas bocas.
Bocas de crianças queimadas, crianças mudas, crianças sem unhas, crianças cegas
-sem pai, sem mãe,
sou eu aqui

crianças sem casa,
-mamã Inês, mamã Inês

crianças de 8 com corpos de 3, crianças com barrigas gigantes, com altos na cabeça. Crianças tristes, felizes, crianças com fome
- mata bicho, mamã Inês

crianças com sede, com rosto desfigurado, crianças que se agarram á parede para andar, crianças assustadas, crianças que soiltam gargalhadas leves quando lhes mordo a barriga, quando levanto o nariz para cima e reviro os olhos
- olha agora, uma porquinha
(e fico tão ridicula quando faço caretas)

crianças albinas, crianças a experimentar aguarelas, plasticinas, puzzles de borracha
-olhem eu aqui

crianças com cheiro de urina, crianças que são preciso carregar ao colo.

E há a Mimusa
- tem sida

e há o joão. Há o domingos, a carla, a Marisa.
Há o Ganino, a vóvó, a Lucinha
- e eu a brincar ás caplanas

e há o Fabião, a Natércia, e eu a fingir que agora sou macaca...



Há o agora porque aqui não há o antes nem o depois.
E agora?
Os cânticos de bocas virgens lá fora.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Mo-çam-bi-que

Morreste à um ano, e continuas aqui da mesma forma: vivo.

Moçambique. Daqui a pouco.



Três malas prontas, enormes, completas
completas de t-shirts, de saias, de vestidinhos, de sandálias, de chinelos, de fotos, de pessoas, de saudades, de coisas não analisadas, de músicas especiais, de abraços dados, de abraços por dar, de mãos, de pés, de ombros, de livros, de medos, de segredos

- levo mesmo tudo quando em levo a mim

e ir.
Ir na realidade quente de quem sabe resumir a vida a estas três malas breves, resolvidas.
Ir sem reparar nas luzes, na sombra do chão, na inevitabilidade do a-seguir que mete medo

- fica. Fica


E sim, por favor, sem lágrimas num até já recorrente de quem sai á noite para dançar e volta de manhã

- vou dançar.



Até já
Até já quarto, até já cama, até já tempo, até já espaço, até já mundo. Até já Ana, até já Luís, até já Anto, até já Luxi, até já Joanne

- o Paulo vai comigo, ele vai sempre

até já mãe, manos, até já sobrinhos fabulosos. Até já livros, até já sitios, até já escrita, até já faculdade

- sim, eu disse até já

até já fotos, até já perfumes, até já make up. Até já coisas, objectos pessoais, até já momentos perpétuos.

Até já esquecimento, até já chocolate-quando-estou-com-medo, até já unhas por roer.