sábado, maio 29, 2010

Cartas a M. - VII carta

Querida M.:

Ontem à tarde foi o funeral do Tio J.

Não, não erámos particularmente chegados, não tivemos uma relação especial, mas rimo-nos várias vezes juntos e a imagem que fica dele é a de um homem bom, um tio bonacheirão que fazia questão de pagar cafés, gelados, pastilhas e que no dia do casamento se sentiu feliz no meio de uma família grande que se erguia.

As filhas e a ex-mulher voavam como abutres sobre uma carniça frágil, morta, desprotegida, e era a sua mãe de 80 anos que protegia, em solo sagrado, o corpo morto da exposição aos animais.

Há, com certeza, uma relação privilegiada entre uma mãe e a pessoa que lhe cresce no corpo. E há, com uma certeza ainda maior, uma ferida de morte que se abre quando a própria morte leva a cria antes da progenitora.

A ideia que trazia sentada ao meu lado no carro era de que aquela mulher pequena podia perfeitamente ter entrado numa luta corpo a corpo com a morte, se isso significasse ter o seu filho de volta: fico com a clara impressão que podia ter sido ela a vencer.


E a tua mãe?
Pelo que sei vai-se aguentando. Estabilizou. Estabilizar é a palavra de ordem para os tempos que vão chegar.
Estabilizar. Para ti, para ela e muito curiosamente, para mim.

sábado, maio 15, 2010

Cartas a M. - VI carta

Querida M.,



Pouco sei de vocês.
A semana passada, antes de entrar em casa, estacionei e liguei-te. As coisas estabilizaram e isso deixa-nos felizes.
Isso deixa-nos felizes como quando vamos ver um bailado. O nosso corpo triste anda até à porta quando o espetáculo acaba e achamos que estamos felizes. Mas não estamos assim tão felizes, pois não? Nunca pensei muito nisto, mas os bailados sempre me deixaram triste a pensar que estaria feliz.







Mas tu e a tua mãe.
Não vos vejo há semanas e o fim do telefonema deixa-me assim: as pernas, as pernas angustiadas a caminharem depois de sairem do carro, a irem para casa.

Amanhã vou ver-te.