quarta-feira, janeiro 25, 2006

Ele

A bicicleta pela Lua
A bicicleta pela Lua dentro
- Mãe, Mãe -

A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe -
Ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites russos.
Que hei-de fazer senão sonhar
Ao contrário, quando novembro empunha -
Mãe, mãe - as telhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro - minha mãe – com as suas praças
Descascadas.

A neve sobre os frutos - filho, filho -
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto - meu filho – os satélites
Sonham pela lua dentro, na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplandecentes.
As grandes letras descascadas:é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome –
Minha mãe, minha máquina -
Mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.

Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
Limpo como um alfabeto. E as praças
Dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe – como janeiro resplende
Nos satélites russos. Filho – é a tua memória.

E as letras estão em ti, abertas
Pela neve dentro. Como árvores, aviões
Sonham ao contrário.
As estátuas com polvos na cabeça,
Florescem com mercúrio.
Mãe – é o teu enxofre do mês de novembro,
É a neve avançando na sua bicicleta.

O alfabeto, a lua.

Começo a lembrar-me: eu peguei na paisagem.
Era pesada, ao colo, cheia de neve.
Ia dizendo o teu nome de janeiro.
Enxofre – mãe – era o teu nome
As letras cresciam em torno da terra,
As telhas vergavam ao peso
Do que me lembro. Começo a lembrar-me:
Era o atum negro do teu nome,
Nos meus braços como neve de janeiro.

Novembro – meu filho – quando se atira a flecha,
E as praças se descascam,
E os satélites tão russos avançam,
E na lus floresce o enxofre. Pegaste na paisagem
(eu vi): era pesada.
O meu nome, o alfabeto, enchia-a de laranjas.
Laranjas de pedra – mãe . Replendentes,
As estátuas negras no teu nome,
No meu colo.

Era a neve que nunca mais acabava.

Começo a lembrar-me: a bicicleta
Vergava ao peso desse grande atum negro.
A praça descascava-se.
E eis o teu nome resplendente com as letras
Ao contrário, sonhando
Dentro de mim sem nunca mais acabar.
Eu vi. Os aviões abriam-se, quando a lua
Batia pelo ar fora.
Falávamos baixo. Os teus braços estavam cheios
Do meu nome negro, e nunca mais
Acabava de nevar.

Era novembro.

Janeiro, começo a lembrar-me. O mercúrio
Crescendo com toda a força em volta
Da terra. Mãe – se morreste, porque fazes
Tanta força com os pés contra o teu nome,
No meu colo?
Eu ia lembrar-me: os satélites todos
Resplendentes na praça. Era a neve.
Era o tempo descascado
Sonhando com tanto peso no meu colo.
Ò mãe, atum negro –
Ao contrário, ao contrário, com tanta força.

Era tudo uma máquina com as letras
Lá dentro. E eu vinha cantando
Com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
De peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.

O teu nome negro com tanta força –
Minha mãe.
Os satélites e as praças. E novembro
Avançando em janeiro com seus frutos
destelhados ao colo. As
estátuas, e eu sonhando, sonhando.
Ao contrário tão morta – minha mãe –
Com tanta força. e nunca

- mãe - nunca mais acabava pelo tempo fora.

Herberto Hélder, 1971

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Congratulations Mister President

Pela 1ª vez em trinta anos de história democrática, Portugal tem um Presidente da República de direita.




Queria tê-lo visto ganhar como sempre me habituei a ver; a ouvi-lo ríspido em firmezas políticas de alta amplitude como sempre ouvi; queria percebê-lo ganhador como sempre entendi



- homens como ele nunca perdem, menina


e há um magote de macacos agarrados a uma felicidade torta escrita em cartazes de 1991. Há este magote de macacos que não conhece lealdade a uma cor nem sabor a uma dor: há um enorme e terrível magote gigante de macacos de rabo longo agarrados a galhos secos de árvores estéreis que riem felizes o riso das hienas

- que sabem

que avistam a presa ao fundo da floresta.


- olha ali menina: a podridão humana é fétida como o cheiro a urina.





Porque os outros se mascaram mas tu não
porque os outros usam a virtude
para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.



Porque os outros são túmulos caiados
onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.



Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.



Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


Sophia M. B. Andersen

sexta-feira, janeiro 13, 2006

and we're always fuckin

13 de Janeiro de 1966

Meu amor:




Disseram que a reacção alérgica do tomate do almoço de ontem fez-me isto: uma imensa vontade de ter-te a toda a hora como se o mundo para lá disto não existisse, como se não tivessemos cortinas no quarto, como se o pão com fiambre soubesse a pão com queijo francês.

Diz-me se me engano que o tempo que leva até me vires buscar é aquele que desenha o caminho da lua em redor da terra, ou vens no momentoem que esta carta atravessar o atlântico e tu a tocares com o olhar.




Fechada aqui esqueço-me das facas da cozinha, da forma como a faca da cozinha falava comigo sem ninguém saber, como ela me dizia coisas bonitas

- tens um pescoço lindo, posso tocar-te?


e me pedia para lhe mostrar os pulsos


- mostra-me os teus braçinhos


e eu nunca percebi porquê tanto sangue se doía tão pouco.