quinta-feira, outubro 28, 2010

Cartas a M. - XIX carta

Querida M.,


Não preciso de mais ninguém para além de mim própria.
Nunca vou precisar.


De qualquer forma, apareceu ontem o corpo. Vinha na minha direcção porque me procurava e abraçou-me.
Descobrimo-nos outra vez.
Dentro da ardência destas noites, ninguém é condenado e todos seremos salvos.

terça-feira, outubro 19, 2010

Cartas a M. - XVIII carta

Querida M.,



Anaïs Nin fazia todo o sentido quando descrevia no seu livro “ A Casa do Incesto” o cuspir do seu coração.
Na manhã em que se levantou para começar a escrever o livro, levantou-se e tossiu. Ao tossir saiu-lhe o coração pela boca à laia de vómito de carne.

Pois também eu queria poder cuspi-lo assim, livrar-me dele, fazê-lo sair. Os corações não são úteis, não fazem bem à saúde e normalmente fazem-nos sentir mais pequenos e mais sozinhos do que é suposto.

Se cuspisse o meu coração como ela, queria fazê-lo na sanita.

Ficaria alguns instantes a olhar para ele e a tentar recompor-me. Depois, com as duas mãos, procuraria desfazê-lo com os dedos e as unhas para me certificar com os sentidos que tinha acabado a razão da minha dor.
A segunda morte deste coração dar-se-ia por afogamento numa conduta de esgotos (teria de haver uma segunda morte porque um coração como o meu não morre à primeira).

Só desta forma teria a certeza que ele estava morto, como era suposto, e que nós
( eu e o meu corpo)
criaturas assombradas até à data, estariamos definitivamente livres.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Espelho - um breve texto roubado indecentemente a Luís Filipe Cristóvão

(é bom ter amigos a escrever assim)




"despeja o saco sobre a cama, a cama sobre o quarto, o quarto sobre o chão - enterrado na areia. despeja a boca sobre a mesa, a mesa sobre as pernas, as pernas sobre o infinito - desaparece. despeja a cabeça sobre ombros, os ombros sobre o tronco, o tronco sobre o terreno - preso na lama. despeja as sensações, as emoções, as razões, a falta delas - faz-te, finalmente, invisível. "

terça-feira, outubro 12, 2010

sábado, outubro 09, 2010

Cartas a M. - XVII

Querida M.,



O A. hoje encontrou-me aqui.

Ele já sabia - as pessoas vão sabendo- e abraçou-me com uma força estranha assim que me viu. Achei que me queria consolar, a minha intuição não me disse que aquilo não era para mim, que aquela força de braços não era para o meu corpo, era para o dele.

Contou-me que tem tentado sobreviver ao enterro de um bebé que a mulher ia ter. Passaram juntos o suplício do funeral de alguém que viveu com eles 6 meses numa barriga partilhada e bonita. Eu não vi aquela barriga crescer, nem tive oportunidade de conhecer a pessoa que lá estava dentro.E tenho pena. Mesmo.

Não sei o que se diz a alguém que perde um filho.
Os meus olhos engasgaram-se da mesma forma como quando soube que a tua mãe morreu; a minha garganta contraída de medo, sem nada para te dizer, e ao mesmo tempo a querer dizer-te tanto.
Cumprimentei a mulher do A. com a distância habitual mas apertei-lhe os dedos da mão com mais força na esperança que eles dissessem o que eu queria dizer: às vezes consigo que as minhas mãos falem por mim.
Reparei que tremia.

Convidaram-me para um chá. Eu aceitei.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Cartas a M. - XVI carta

Querida M.,

É como tentar andar outra vez e eu não sabia. Esta é a hora de colar peças atrás de peças sem pedir ajuda a ninguém porque ninguém as saberá colocar no sítio certo como nós. Nós sabemos o sítio certo das nossas peças e os outros não. Só nós. É um segredo puro que se usa no corpo à laia de apêndicite ou pé partido.

Amanhã estaremos juntas. E eu tenho tanta coisa para te contar.