sexta-feira, maio 26, 2006

O poema que não é

O ritual do alimento.
O estrangular da comida na garganta depois de submetida ao sofrimento provocado pela tortura da mastigação: aqui
aqui na boca, no sítio onde dentes fortes coabitam à maneira de casas americanas com jardim
- em sentido, cima das gengivas

e onde tudo é sempre vermelho
tudo é tão vermelho
tudo é tão quente
tudo é húmido
- eu sempre quis viver dentro da minha boca.


Talvez por isso me cuspo tanto; por pôr tantas vezez as mãos na boca na tentativa de juntá-las dentro
(dentro da minha boca)

para me poder sentir na minha língua
nos dentes
para me poder ter na saliva que caí
(queria tanto poder sentir-me mais)

e talvez por isso me deixaram aqui, longe de todos:
longe daqueles que acham que andar nua na rua de mãos na boca
é insanidade criminosa
(mãos na boca embebidas em saliva do corpo)
-da boca

é estranho.






quinta-feira, maio 18, 2006

Revisitação




Sonhei que havia ficado grávida
do filho do dono da farmácia Assunção
por ele me ter olhado para as pernas
numa terrível aflição.



Não sei se me olhava assim por ter umas pernas bonitas, ou se por estarem crivadas de cortes.

Sei que o olhar dele me havia engravidado e eu vim a casa pedir ajuda para ter um filho que me saiu pela boca.
E todos os médicos disseram que eu tinha uns óptimos maxilares para parir.
Quando acordei, ainda tinha bocados de placenta a escorrerem-me dos lábios: porque ele saiu-me mas o que era dele ainda está em mim.

sexta-feira, maio 12, 2006

Reflexus

uma sala cheia de gente a transpirar-se em cadeiras caladas: como se a relação corpo-cadeira fosse estabelecida sobre o inequívoco
sobre o óbvio.


Foi quando se começou a falar de lírica Camoniana que os meus olhos olharam para o canto da sala grande de espaço, quando os meus olhos olharam a ficcionalidade do

absurdo:
há no canto da sala indicada uma pessoa a tremer de malária, um bebé pequeno a cheirar à malária que o vai matar

- eu um dia vi na cara de um bebé humano a cara da malária, a cara amarela da malária sorridente a dizer-me
olá


olá
como se o pudesse dizer sem receio, sem medo, como se o corpo dele fosse já dela e nada houvesse a ser feito.

quarta-feira, maio 03, 2006

Dança de gatos

gosto quando me cortas as unhas dos pés à noite e dizes
- amo-te como nunca amei ninguém

a tua boca, os teus dentes, o desenhos dos teus lábios todos juntos fazem tudo parecer tão real como gelado de menta a derreter na boca num dia quente de Verão Moçambicano.


Gosto de lamber-te as costas, gosto de lamber-te do fundo das costas ao início natural da cova do pescoço. Gosto de na mesma tirada de humidade de boca efectivar cada instante de saliva em cola que nos concentre as p-a-r-t-e-s
- porque tu és de mim na mesma pele, na mesma parte

e eu enrolada em ti nua, à maneira de piton amarela que procura a asfixia do seu objecto de sedução, a asfixia do que lhe será alimento




Foi mais tarde quando dormimos que ouvi, por debaixo da cama, os meus sapatos de salto alto pretos a dizerem um ao outro que se sentiam sós.