Lisboa, 15 de Maio de 1946
Tive ontem uma visão do futuro, em que uma mulher se sentava ao meu lado no comboio e me questionava:
- a menina mata pessoas com os olhos, não mata?
E eu respondia,
- sim, mas não é bem com os olhos, é só com as unhas dos pés, não sei se lhe faz diferença?
Assustei-me.
Oiço vozes quando estou sozinha, sei aperceber-me que são duas vozes femininas que se juntaram-me para me torturar.
Bebo o meu chá no quarto porque a minha mãe não me deixa sair.
Trouxe-me maçãs. Comias. Todas.
Amei as duas maçãs desde o momento em que ela as trouxe para o meu quarto.
Transformei-me em cada uma enquanto as comia, como se fosse eu a trincada, e os meus próprios dentes se tornassem parte dessa carne de fruta por
osmose emocional,
pela osmose dos afectos
- porque desde pequena, no fim de uma refeição em familia, que eu desejo secretamente ser uma maçã vermelha,
despida num prato de loiça francesa
aberta
servida crua.
Sonhei que havia ficado grávida
do filho do dono da farmácia Assunção
por ele me ter olhado para as pernas
numa terrível aflição.
Não sei se me olhava assim por ter umas pernas bonitas, ou se por estarem crivadas de cortes.
Sei que o olhar dele me havia engravidado e eu vim a casa pedir ajuda para ter um filho que me saiu pela boca.
E todos os médicos disseram que eu tinha uns óptimos maxilares para parir.
Quando acordei, ainda tinha bocados de placenta nos lábios porque ele saiu-me mas o que era dele ficou em mim.
Ficou.
quinta-feira, dezembro 30, 2004
terça-feira, dezembro 21, 2004
Don't want your hand this time i'll save myself
Café do Sr. António, Torres Vedras
17 de Novembro de 1958
(...)Não é por mal que eu digo isto mas estão duas mulheres de 5 cm a falar em cima da minha mesa do café, bem ao lado da chícara, perto do pires, à esquerda da colher, a metros do empregado de mesa que me serviu.
Vejo-as às duas com uma clareza estranha, sem que mais ninguém neste café se aperceba que an minha frente estão estas duas criaturas minusculas, vestidas à moda, de meia branca e sapato de verniz, com saias a fingir de balões de ar.
Pela postura arrisco dizer que se acham o máximo.
Atento-lhes na conversa, vejo-as olharem-me e a questionarem-se:
- conheces a tipa?
A tipa sou eu. Chego a esta conclusão por exclusão de tipas.
E continuam:
- vem aqui sempre, olhar a janela, não sabias?
- eu venho aqui às vezes, sim, e olho a janela e qual é que é o mal?
digo-lhes.
Falei sozinha.
O empregado olha-me de soslaio. As duas mulherzinhas riem e continuam num diálogo ensurdecedor sobre mim.
Queria calá-las antes que alguém as visse ou ouvisse: não queria que me achassem louca.
Uma delas pergunta á outra
- consta que enfeitou um pinheiro murcho
e eu grito levantando-me da cadeira:
- o pinheiro não estava murcho, já estava assim quando o meu marido o trouxe hoje
elas respondem:
- não estava nada...mas também, com aqueles enfeites, até eu murchava
e riem.
Calo-as com o pacote de acúçar que lhes coloco em cima para as fazer parar.
O pinheiro ficou óptimo, os enfeites perfeitos, as fitas exemplares: sou a dona de casa que todo o marido cansado deseja ter:
porque sei cozinhar,
sei limpar,
sei fritar,
sei arejar,
sei fazer qualquer tipo de bolo,
arranjo o jardim sozinha de manhã
sei congelar,
sei assar,
faço o melhor pequeno almoço do mundo
-mas sabes amar?
e sei fazer a cama,
sei que não preciso de empregada,
sei que sou um ás a preparar molhos especiais para a carne de domingo,
sei que a minha sogra me adora
- e sabes fazer filhos na barriga?
e sei fazer centros de mesa
- filhos? Claro que sei, toda a mulher sabe-
e troncos de natal e bolo rei em casa
- mas disseram filhos?- e ás quintas feiras visto-me de branco e sou o que quer que eu seja- filhos?
- sim, filhos? Consegues?
As vozinhas delas, estridentes, acutilantes, entram pelo ouvido, moem-me a paciência como o ganir de um caniche histérico por afeição
- não podes, não podes
esmago-as com as pontas dos dedos e digo-lhes:
- desculpem-me mas até foi de propósito, desculpem
Viro a cara para a janela que chove e oiço num repente estranho:
- é tão estúpida que pede desculpas
Estão vivas.
Grito-lhes, mando-as calar, o empregado de mesa vem ter comigo e pergunta se está tudo bem
- sim, evidentemente
e acabo o café.
Elas olham-me, desafiam-me e desistem de mim.
Mudam o tema da conversa por puro desinteresse e dizem uma à outra:
- voluntariza-te e coça-me
Espirro o resto de café que tinha na boca e grito-lhes:
- anãs miseráveis
A de azul baixa os collants à de vermelho e coça-lhe o interior das pernas..
Grito
-párem com isso suas porcas
o empregado vem à mesa, limpa-as com um pano:
elas riem-se de mim, no pano molhado, e vão-se.
17 de Novembro de 1958
(...)Não é por mal que eu digo isto mas estão duas mulheres de 5 cm a falar em cima da minha mesa do café, bem ao lado da chícara, perto do pires, à esquerda da colher, a metros do empregado de mesa que me serviu.
Vejo-as às duas com uma clareza estranha, sem que mais ninguém neste café se aperceba que an minha frente estão estas duas criaturas minusculas, vestidas à moda, de meia branca e sapato de verniz, com saias a fingir de balões de ar.
Pela postura arrisco dizer que se acham o máximo.
Atento-lhes na conversa, vejo-as olharem-me e a questionarem-se:
- conheces a tipa?
A tipa sou eu. Chego a esta conclusão por exclusão de tipas.
E continuam:
- vem aqui sempre, olhar a janela, não sabias?
- eu venho aqui às vezes, sim, e olho a janela e qual é que é o mal?
digo-lhes.
Falei sozinha.
O empregado olha-me de soslaio. As duas mulherzinhas riem e continuam num diálogo ensurdecedor sobre mim.
Queria calá-las antes que alguém as visse ou ouvisse: não queria que me achassem louca.
Uma delas pergunta á outra
- consta que enfeitou um pinheiro murcho
e eu grito levantando-me da cadeira:
- o pinheiro não estava murcho, já estava assim quando o meu marido o trouxe hoje
elas respondem:
- não estava nada...mas também, com aqueles enfeites, até eu murchava
e riem.
Calo-as com o pacote de acúçar que lhes coloco em cima para as fazer parar.
O pinheiro ficou óptimo, os enfeites perfeitos, as fitas exemplares: sou a dona de casa que todo o marido cansado deseja ter:
porque sei cozinhar,
sei limpar,
sei fritar,
sei arejar,
sei fazer qualquer tipo de bolo,
arranjo o jardim sozinha de manhã
sei congelar,
sei assar,
faço o melhor pequeno almoço do mundo
-mas sabes amar?
e sei fazer a cama,
sei que não preciso de empregada,
sei que sou um ás a preparar molhos especiais para a carne de domingo,
sei que a minha sogra me adora
- e sabes fazer filhos na barriga?
e sei fazer centros de mesa
- filhos? Claro que sei, toda a mulher sabe-
e troncos de natal e bolo rei em casa
- mas disseram filhos?- e ás quintas feiras visto-me de branco e sou o que quer que eu seja- filhos?
- sim, filhos? Consegues?
As vozinhas delas, estridentes, acutilantes, entram pelo ouvido, moem-me a paciência como o ganir de um caniche histérico por afeição
- não podes, não podes
esmago-as com as pontas dos dedos e digo-lhes:
- desculpem-me mas até foi de propósito, desculpem
Viro a cara para a janela que chove e oiço num repente estranho:
- é tão estúpida que pede desculpas
Estão vivas.
Grito-lhes, mando-as calar, o empregado de mesa vem ter comigo e pergunta se está tudo bem
- sim, evidentemente
e acabo o café.
Elas olham-me, desafiam-me e desistem de mim.
Mudam o tema da conversa por puro desinteresse e dizem uma à outra:
- voluntariza-te e coça-me
Espirro o resto de café que tinha na boca e grito-lhes:
- anãs miseráveis
A de azul baixa os collants à de vermelho e coça-lhe o interior das pernas..
Grito
-párem com isso suas porcas
o empregado vem à mesa, limpa-as com um pano:
elas riem-se de mim, no pano molhado, e vão-se.
terça-feira, dezembro 14, 2004
Do not ring me
Há coisas estranhas a sairem-me dos dedos hoje:
são palavras.
Dá-me a mão hoje, friend, como se estivesses aqui, como se o mundo girasse numa lógica gravitacional sobre mim e tu só fosses mais um dos muitos seres a quem sou indispensável.
Mas sei-te doente e a bactéria sou eu.
-“Sim, quem fala?”
Um telefonema marcado por dedos seguros, atendido pela pessoa errada.
Rio-me e a voz que me responde conhece-me, sabe a minha estória, o meu percurso até este telefonema, e mostra-se protegida por uma segurança falseada sobre a situação:
baixo o auscultador até ao peito,
rio-me
abano a cabeça porque isto não pode estar a acontecer comigo
julgo-me ridicula
volto a rir.
- “Ele não pode falar, está no banho.”
Ele está no banho e uma voz feminina atende-lhe o telefone.
Sinto-me estúpida porque ele está no banho, a metros desta usurpadora de estórias de amor, e perco o meu latim com uma possidónia vulgar cheia de possessão por uma coisa que nunca será dela
-porque as pessoas na nossa vida naõ são provas de compras, não são territórios ocupados: ter alguém é anexação, jamais expropriação,
Mas as mulheres são serezinho horríveis e ela repete a graça:
- Ele está no banho, queres que lhe dê algum recado teu?”
Recado?
Apetecia-me fazer o meu ar mais arrogante e chamá-la
- Filha,
questioná-la:
- queridinha, sabes mesmo com quem estás a falar?
Ela burrinha e básica, descaracterizada, responder-me-ia:
Sei sim
E eu dizia-lhe:
-entao trate-me por você, porque eu não a conheço de lado algum, nunca passei férias consigo, não sei que lugares frequenta, e não é das minhas relações
E a coisa teria tendência para descer.
Não foi o acontecido.
Faço malas, expropriada, e estou no meu mundo amanhã: Porto. Lobo Antunes.
são palavras.
Dá-me a mão hoje, friend, como se estivesses aqui, como se o mundo girasse numa lógica gravitacional sobre mim e tu só fosses mais um dos muitos seres a quem sou indispensável.
Mas sei-te doente e a bactéria sou eu.
-“Sim, quem fala?”
Um telefonema marcado por dedos seguros, atendido pela pessoa errada.
Rio-me e a voz que me responde conhece-me, sabe a minha estória, o meu percurso até este telefonema, e mostra-se protegida por uma segurança falseada sobre a situação:
baixo o auscultador até ao peito,
rio-me
abano a cabeça porque isto não pode estar a acontecer comigo
julgo-me ridicula
volto a rir.
- “Ele não pode falar, está no banho.”
Ele está no banho e uma voz feminina atende-lhe o telefone.
Sinto-me estúpida porque ele está no banho, a metros desta usurpadora de estórias de amor, e perco o meu latim com uma possidónia vulgar cheia de possessão por uma coisa que nunca será dela
-porque as pessoas na nossa vida naõ são provas de compras, não são territórios ocupados: ter alguém é anexação, jamais expropriação,
Mas as mulheres são serezinho horríveis e ela repete a graça:
- Ele está no banho, queres que lhe dê algum recado teu?”
Recado?
Apetecia-me fazer o meu ar mais arrogante e chamá-la
- Filha,
questioná-la:
- queridinha, sabes mesmo com quem estás a falar?
Ela burrinha e básica, descaracterizada, responder-me-ia:
Sei sim
E eu dizia-lhe:
-entao trate-me por você, porque eu não a conheço de lado algum, nunca passei férias consigo, não sei que lugares frequenta, e não é das minhas relações
E a coisa teria tendência para descer.
Não foi o acontecido.
Faço malas, expropriada, e estou no meu mundo amanhã: Porto. Lobo Antunes.
quinta-feira, dezembro 02, 2004
The hours
You make me cry.
(...) Respiro fundo
e encho-me de força
o ar correndo no meu corpo
(...)espero que ela oiça
Não sei porquê mas não dá mais: não faço ideia porque motivo o facto de saltar sem rede de segurança, agora, se tornou senseless.
E eu sempre gostei de riscos.
Olhar o retorno do espelho: uma mulher com
nariz
boca
dois seios, coxas
olhos
ouvidos
duas pernas, dedos
unhas
pele
osso
e
dois braços
dois braços de veias esventradas, o sangue que escorre e uma sensação rija de poder
- fui eu corpo, perdoa-me
Mas é sonho. Volto a dormir.
O ritual antigo de automutilação certo dá poder aos seus praticantes : poder na dor, com os outros, com o que eles sentem, um poder sustentado em relação ao que se pode querer.
Did you want something simple?
(..)Respiro fundo
e encho-me de força,
o ar correndo no meu corpo
espero que ela oiça(...)
Did you really want something simple?
São os acordes de The cure que me fazem perguntar-te de lençol enrolado:
- and what am I to you?
A resposta sai-te da boca em poucos segundos:
- my sugar sexy lovelin´ girl...´cause with us, sex is always first.
(...) respiro fundo
e encho-me de força
.o ar correndo no meu corpo
espero que ela oiça (...)
Amarro-te. Sempre gostaste de algemas, sempre vibraste quando te prendia na cama.
Vejo-te feliz. Queres que me dispa.
Tiro de debaixo da cama o que tinha preparado para ti: rego-te com querosene.
Tu transpiras.
Acendo um fósforo, tu queres que te desamarre agora que o jogo se tornou melhor, agora que os meus olhos brilham, agora que sinto poder nas veias.
Puxo uma cadeira, sento-me: assisto ao melhor espetáculo de fogo que alguma vez tive a possibilidade de ver.
Tu ardes.
(...) Respiro fundo
e encho-me de força
o ar correndo no meu corpo
(...)espero que ela oiça
Não sei porquê mas não dá mais: não faço ideia porque motivo o facto de saltar sem rede de segurança, agora, se tornou senseless.
E eu sempre gostei de riscos.
Olhar o retorno do espelho: uma mulher com
nariz
boca
dois seios, coxas
olhos
ouvidos
duas pernas, dedos
unhas
pele
osso
e
dois braços
dois braços de veias esventradas, o sangue que escorre e uma sensação rija de poder
- fui eu corpo, perdoa-me
Mas é sonho. Volto a dormir.
O ritual antigo de automutilação certo dá poder aos seus praticantes : poder na dor, com os outros, com o que eles sentem, um poder sustentado em relação ao que se pode querer.
Did you want something simple?
(..)Respiro fundo
e encho-me de força,
o ar correndo no meu corpo
espero que ela oiça(...)
Did you really want something simple?
São os acordes de The cure que me fazem perguntar-te de lençol enrolado:
- and what am I to you?
A resposta sai-te da boca em poucos segundos:
- my sugar sexy lovelin´ girl...´cause with us, sex is always first.
(...) respiro fundo
e encho-me de força
.o ar correndo no meu corpo
espero que ela oiça (...)
Amarro-te. Sempre gostaste de algemas, sempre vibraste quando te prendia na cama.
Vejo-te feliz. Queres que me dispa.
Tiro de debaixo da cama o que tinha preparado para ti: rego-te com querosene.
Tu transpiras.
Acendo um fósforo, tu queres que te desamarre agora que o jogo se tornou melhor, agora que os meus olhos brilham, agora que sinto poder nas veias.
Puxo uma cadeira, sento-me: assisto ao melhor espetáculo de fogo que alguma vez tive a possibilidade de ver.
Tu ardes.
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