sexta-feira, março 25, 2005

Me, myself and I

Lourenço Marques, 25 de Março de 1959



Querida Genoveva:

As mulherzinhas vieram comigo no barco: deixaram a minha casa, os sitíos que frequentava em Lisboa e nas Caldas, o guarda-fatos da minha mãe, o sotão dos meus avós para me surgirem aqui.
Tenho medo delas.
Em desespero, convenci-as a vir ao meu quarto para chegarmos as três a um acordo: elas entraram, sentaram-se e avisaram-me que tinham uma exigência inicial, que tinhamos de nos desnudar as três
- a nudez tem um poder próprio

disseram.

Despi-me com elas. A minha tia entrou no quarto instantes depois e encontrou-me nua, sentada na cama a falar sozinha.
Sei que estão a arranjar tudo para o meu regresso para breve, por isso informo-a que não havará necessidade de responder à minha missiva.

da sua sempre amiga,






Maputo, 25 de Março de 2005



Foi um destes dias à tarde. Não estava sozinha na sala mas as paredes soltaram-se e afastaram-se do chão que as unia.

Os acordes iniciais de Numb, Linking Park, a entrarem-me pelos ossos e pela janela de vidro grande, aqui.

Aqui. Aqui a Km de uma civilização que se identifique com este tipo de sonoridade, aqui onde a cobertura rádio é má e a cobertura telefónica dá nos nervos

- Denunciaste-te
e o meu corpo gelou.

Encostei a testa ao vidro da janela até o som se esgotar. Perfeito.


Recebi uma carta da tua mãe ontem.
Aprendi que 1 ano, 2 meses e 23 dias depois as hemorragias estacam e dão lugar a cicatrizes profundas.


Há um jardim com flores frente á casa onde vivo: descobri que as flores falam entre si quando alguém passa por elas.
Aprendi a jogar ás pedrinhas, a fazer goiabada, a socorrer ataques em 3 segundos.
Aprendi a entrar numa sala só de crianças deficientes: a dar-lhes comida, a contar-lhes estórias que só entendem pelas expressões que o meu rosto adquire.

Aprendi que o Senhor Bila não gosta de falar dos filhos porque dois deles morreram vitímas de Sida
- e ele ainda não soube fazer cicatrizes

aprendi que o doce favorito do Fabito é gelatina tutti-frutti, que há um funcionário das irmãs que passa 30 minutos diários a ver-me correr atrás de uma árvore.

Aprendi a trepar, a dar upas a dois chocolatinhos ao mesmo tempo, a olhar com ódio para os brancos mal amados que olham para eles como não-me-toques-coitadinho-que-vai-morrer.

Aprendi que a minha coragem ás vezes faz-me correr riscos desnecessários, que as pessoas afinal podem mudar, que o céu africano foi pintado à mão mas ninguém sabe.

Aprendi que as pessoas não se perdem, se um dia houve em que as ganhámos.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ele sorri como eu, por essa aprendizagem :)
lux