sexta-feira, abril 15, 2005

Se eu morresse, tu choravas?

Mahotas, 2 de Abril de 2005


Morto.
A boca das virgens calou-se hoje. Não houve ninguém a cantar, e o sol nasceu forte e grande com um calor seco assassino.

A tristeza colou-se ás paredes da casa e a sensacão de perda faz-me acreditar que o mundo ficou mais pobre de repente.
Parece que lhes morreu um irmão, um pai, um melhor amigo.
Andam cabisbaixas, tristes, como se parte delas tivesse ido com ele

- é um dia triste, menina

e juntam-se de roda de uma televisao velha com imagens cheias de chuva e interrupcoes constantes para ver um pouco de um funeral longo e penoso

- vao levá-lo, menina

Eu sou a menina delas e também sinto o dia triste em mim.
Eu sou a menina silenciosa que lhes observa os passos sentada no chao da varanda do quarto, a menina que constantemente escreve num caderno de capa preta

- é um diário, menina?

Mais do que isso, irmã. A minha vida aqui. Tudo.
Cada situacao, cada instante, cada namorado assumido, rejeitado, desejado,

- eu sou este caderno de capa preta: estou escrita nele

E os cães da casa uivaram toda a noite. Muito.
Uivaram terrivelmente, como se a morte tivesse passado pelo portão e lhes tivesse dito olá.
Talvez tivesse passado e tivesse seguido para Roma: confesso que não sei.

Who am I to Know?I'm just a simple girl.

quarta-feira, abril 06, 2005

Se eu fosse uma formiga num carreiro, pisavas-me?

Sentadas aqui as duas a ver estrelas debaixo deste céu gigante parecemos gémeas.
Somos iguaizinhas de costas, na escuridão da noite africana.

Queria dizer-te uma data de coisas mas não posso: não percebes português e eu não falo changana.
Queria dizer-te que gosto de ti.

Não sei se é do teu diagnóstico
- esquizófrenia paranóide

se é pela forma como me olhas:tanto a rir estranhamente bem como com os dois olhos esgazeados á procura de uma faca para dar dor a um alguém
- devias saber que a nossa dor nao diminui quando infligida a segundos

Gosto de ti e gosto de me sentar aqui contigo. Gosto da forma como acho que gostas de mim.
A loucura sempre me fascinou.


Sempre que olho para a tua cicatriz penso que somos muito mais semelhante do que possas imaginar.
- eu também já tentei engolir o mundo para me matar...

Tu engoliste uma pedra e rasgaram-te a pele do pescoço para te salvar
- alguém te perguntou se querias ser salva?

E também o faria da forma que tu o fizeste: engoliria a minha pedra escondida no meu quarto.
És uma mulher única e apetecia-me abraçar-te.


Eu também quero ter um filho como tu tiveste
- a pessoa certa?achaste?

eu morro de medo de acertar no pai errado.

(...) E eu faria exactamente o mesmo que tu fizeste. Se encontrasse a minha cria morta também o punha na capulana para passear com ele pela cidade,
- como se vivesse

e podia cheirar mal que para mim seria sempre o cheiro perfeito do corpo saído do meu: amá-lo-ia pela eternidade.

Faria como tu. Até me encontrarem cantaria para ele embrulhado em mim, e não deixaria que mo levassem nunca, ainda que me amarrassem como fizeram contigo, depois de vos acharem em carinhos de mãe e filho que não se sabem despedir da vida.

Faria o mesmo que tu fizeste e é por isso que te amo, insana. : somos da mesma textura, iguais.
Temo dizê-lo alto porque elas não podem descobrir-me igual a ti:
- fariam-me o mesmo, atavam-me.

Não posso deixar que aconteça, entendes? Não posso.


Mas gosto de ti. A sério que gosto de ti.

sexta-feira, abril 01, 2005

kp...I saw your comment :P

Tenho medo das minhas ex-mulheres. Casei inúmeras vezes, amantizei-me umas quantas outras e nunca fiquei até ao fim: recuso-me a ver casas amarelas de portão azul pegarem fogo.

Não sei se tenho medo, se tenho pânico deste fogo: ir embora sozinho, depois da chegada dos bombeiros, parece-me justo.
Podia ficar e chorar, podia fazer a dança do fogo e regozijar-me enquanto tudo é lume, mas a mim só me apetece correr: fugir dali rápido.

Tenho muito medo que o fogo venha atrás de mim e me queime a cara como as minhas ex-mulheres gostariam que acontecesse.
Tenho medo que elas se unam em acusações e me ponham um pneu encharcado em petróleo á volta do pescoço, e me queimem vivo em aplausos: sei que o desejam.


Depois só temo a ideia de que alguma delas possa secretamentedeixar de controlar a concepção e me apresente uma criança dizendo
- é teu

e eu teria de olhar para ele e ver-me. Teria de olhar para ela e tê-la na incontabilidade dos meus dias: não poderia deixar metade do meu corpo, agora noutro, fugir-me pelas cidades e dar-se a outros homens.

Uma. Uma das minhas exs é capaz disso: é louca o suficiente para me fazer infeliz.



Foi capaz de me perguntar, durante a efervescência dos corpos, deitada nua debaixo de mim nú, a olhar para aquilo que tenho dentro dos olhos

-fazes-me um filho?


Eu não lhe disse sim.

Ela riu-se de mim com os seios descobertos, empurrou-me da cama e disse-me que não pedia um papá; que pedia um reprodutor de alta qualidade.

Só não ri porque doeu. Vestiu-se e não mais a vi.


Queria ter-lhe perguntado qual a cor de cortinas de sala que ela gostaria de ver numa casa marela de portão azul.