terça-feira, julho 19, 2005

Ata-me

Queria dizer-te porque sofro, porque dói, mas tinha de me despir na tua frente, tinha de pôr-me nua na direcção dos teus olhos para que entendesses os meus porquês, os meus comos, nas vagas certezas dos meus quandos

- olha-me nua em cima da cama tua: sou a Pítia de Delfos bebêda, a boca pela qual Apolo se revela, a boca que se rasga sempre que o deus me viola na mostra do futuro a mortais sedentos de segurança no porvir



e tu não és imortal e fostes.

Queria confidenciar-te que faz toda a diferença o facto de haveres decidido morrer, haveres escolhido a porta da sala, o lençol, o descuido da limpeza da sala visível a quem te removeu o corpo:
decidiste morrer

(ele deixou-te quando o teu corpo e a tua alma ainda lhe sentiam a falta)

e os meus olhos brilham de lágrimas de orgulho por ter sido essa a causa do teu enforcamento:

amor

encontrado morto na sala por amor em enforcamento.

- olha-me nua, sou a Pítia de Delfos, a boca pela qual Apolo se revela, a boca que se rasga sempre que o deus me viola para mostrar futuros a mortais sedentos de segurança no porvir

e morreste.


Perdoa-me nunca ter comprado um livro na tua livraria depois de passar horas e horas a revistá-la, perdoa-me nunca mais ter parado para conversar contigo e com os teus dois olhos tristes de amor, perdoa-me o café por tomar, perdoa-me pela vitória do PSD nas últimas autarquicas, perdoa-me por aquele palhaço ter ficado na junta
4 votos apenas

(juro-te que os tiro de lá desta vez: desta vez sem ti)

e perdoa-me por ter esquecido na minha vida o amor pelo qual te mataste:

o amor que se torna justificação de fins e de meios, o amor pelo qual se come
se anda
se fode horas
horas seguidas-seguintes,
horas felizes;

o amor, essa essência insana da existência humana cravada em nós desde a hora da concepção imaculada do milagre da vida:

tens toda a razão amado morto, a existência sem amor perde a funcionalidade e deixa de ter sentido


- Eu nua sou a Pítia de Delfos: a Pítia da boca rasgada pela voz do deus que se faz em mim para dar aos mortais o que pedem



Olha para mim rasgada a apontar a consequência fisiológica da tua morte:

todo o enforcado ejacula em post-mortem e tu vieste-te milésimos antes do suspiro final, como se ali escrevesses uma vingança ao teu Juliett vivo longe
no solitário prazer invejoso que tiraste na hora última do teu corpo condenado.

- Olha-me nua sou a Pítia violada e sacrificada pelos hexâmetros que os mortais me exigem da boca ensanguentada

dá-me tempo para acolher a tua morte e juntá-la a uma outra já curada.


Hoje apetecia-me apanhar borboletas sentada num parapeito dum 70º andar escorregadio, puxando-lhes asas em descuido.



- se havéis chegado aí, aí onde tudo é lírios e flores, mandai borboletas pretas à janela do meu quarto: dançaremos nus, juntos e felizes, à luz quente da lua morta.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não sei se diga...não sei se conte...não sei não sei


Cada vez melhor girl....