segunda-feira, junho 19, 2006

A race for rats to die

Há um bolo de chocolate grande em cima da mesa da casa onde se construíu uma festa.
Há esta mulher encostada à porta da cozinha, a olhar o bolo desde o momento em que aqui chegou. Há esta mulher a dizer ao bolo revestido da negritude viscosa do chocolate
(a dizer com as mãos que tremem na surdina das costas)
- que ninguém me abra com essa faca, que ninguém

porque se virmos bem, a mulher encostada à porta transpira o olhar para o bolo desde o minuto em que aqui chegou
- que ninguém me faça isso, que ninguém me corte com a faca

porque se atentarmos melhor, o bolo é fisicamente parecido com ela: envernizados os dois na pele que lhes cobre a carne, ambos lânguidos nos seus lugares, ambos quietos na espera do estremecimento daquilo que se há-de fazer ali
- não me quero exposta, não me façam isso

e no fim dos parabéns, do silêncio das velas apagadas, a faca entrou no bolo e a mulher encostada à porta caíu morta na simultaneidade do acaso.

Ontem cortei as unhas a pensar em ti.

quarta-feira, junho 14, 2006

Bolha


como se isto não passasse disso mesmo; uma bolha enorme, convexa, onde toda a gente no mundo pudesse caber, onde todos tivessem o seu lugar determinado à hora do jantar, onde eu ao lado do Lobo Antunes pudesse partilhar a mesma sopa de espinafres enquanto ouvia

(exactamente como me disse na feira do livro)
- se todas as meninas da faculdade de letras fossem como a menina, eu iria lá mais vezes

ao que eu responderia
- eu gostei tanto de si quando tinha 19 anos, eu queria tanto abraçá-lo quando tinha 19 anos:
porque é que esperei na fila se eu gosto tanto de si?

porque o meu processo criativo envolve ouvir Muse contando as pombas que passam lá fora, de nariz colado ao vidro quando
(quando)
quando lá fora o som da chuva a cair é o mesmo som cristalino vertido da boca das virgens negras no amanhecer moçambicano, no meio do capim, no meio do nada que é tudo:

o amanhecer que cheira a um tacho de goiabada a fazer-se, borbulhante
(a bolha )
vigiado pelos olhos e pelas mãos atentas da irmã Elvira.
Isto porque há muito tempo que a materialidade do prato,
da colher
da faca
do garfo
e do copo
alinhado coerentemente à minha frente
(o copo de levar à boca para beber)

deixaram de ter o significado de outrora:
a magia da condução do alimento a fazer-se nós
- eu sou o bife de ontem do jantar; o leite com café do pequeno-almoço.
eu sou o bolo de chocolate da minha madrinha que comi anteontem: sou o chá de tília que me levantei para fazer às 4:32 da manhã quando o sono desistiu de mim e eu fui à procura dele para a cozinha com os meus dois pés
(fomos os três sozinhos para a cozinha à procura dele)

e acabámos os seis a pensar em ti
(eu, os meus dois pés, a chávena, a colher e o acúçar)

a pensar em nós a fazer amor na tua cama no momento em que disse
- preciso fazer amor contigo 5 vezes ao dia para conseguir pensar

e a tua resposta fácil a fazer-se num abraço apertado que me leva o corpo para dentro do teu: como se isto não passasse disso mesmo; uma bolha enorme, convexa, onde toda a gente no mundo pudesse caber, onde todos tivessem o seu lugar determinado à hora do jantar; onde eu ao lado do Lobo Antunes pudesse partilhar a mesma sopa de espinafres enquanto ele dizia,
dizia.





quinta-feira, junho 01, 2006

O cheiro do tempo




isto é tudo parte da floresta como podem ver,

temos a terra cá em baixo, temos oxigénio das árvores, temos árvores, temos pica-paus e rouxinóis, temos folhas, folhas verdes e flores do tamanho do pé. Temos madeira para fazer mesas,temos mel que vem das abelhas, temos abelhas roliças a esfregarem barrigas no polén das flores
-odeio abelhas

temos borboletas, nuvens azuis cor de água no céu, temos velhos carvalhos, temos grossas bolotas espalhadas pelo chão, temos fadas e gnomos e vento a bater na ponta do nariz para fazer espirrar

- tenho saudades daquilo

temos coelhos brancos em tocas, temos cheiro a relva molhada quando chove
-eu não queria que chovesse hoje, hoje não

temos mochos de olhos grandes que conseguem ver a noite lúcida
-promete-me que hoje não chove

temos caminhos de terra preta cor de nada, temos a pele das árvores a pedir-nos abraços
-hoje, quando era hoje há um ano atrás eu vi o que pouca gente viu e vivia descalça

temos, temos musgo colado á força das raízes, temos caracoletas e caracóis a passearem o corpo na estrada abanando a cauda para dizerem olá.
Temos passarinhos de asas partidas sem força para voar
-ás vezes queria tanto apanhar o metro descalça

e temos ninhos, ovos, frutos bravos
- todos os dias à noite estico o meu sonho para chegar até ai

e temos o som do vento, temos o som dos bichos, temos a essência da música mais perfeita
- e rezo, rezo a sério, para não se esquecerem de nada do que um dia foi

temos tudo.
Temos sobretudo aquilo que sobra quando a floresta nos recorda o cheiro do mundo no outro lado do mar.