Querida M.:
Ontem à tarde foi o funeral do Tio J.
Não, não erámos particularmente chegados, não tivemos uma relação especial, mas rimo-nos várias vezes juntos e a imagem que fica dele é a de um homem bom, um tio bonacheirão que fazia questão de pagar cafés, gelados, pastilhas e que no dia do casamento se sentiu feliz no meio de uma família grande que se erguia.
As filhas e a ex-mulher voavam como abutres sobre uma carniça frágil, morta, desprotegida, e era a sua mãe de 80 anos que protegia, em solo sagrado, o corpo morto da exposição aos animais.
Há, com certeza, uma relação privilegiada entre uma mãe e a pessoa que lhe cresce no corpo. E há, com uma certeza ainda maior, uma ferida de morte que se abre quando a própria morte leva a cria antes da progenitora.
A ideia que trazia sentada ao meu lado no carro era de que aquela mulher pequena podia perfeitamente ter entrado numa luta corpo a corpo com a morte, se isso significasse ter o seu filho de volta: fico com a clara impressão que podia ter sido ela a vencer.
E a tua mãe?
Pelo que sei vai-se aguentando. Estabilizou. Estabilizar é a palavra de ordem para os tempos que vão chegar.
Estabilizar. Para ti, para ela e muito curiosamente, para mim.
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