segunda-feira, maio 31, 2004

Just a simple breast to give me food....

(...)A carne arrancada, mordida, não reage da mesma forma que a carne que é beijada.
As leoas africanas não são pretas, tem o pêlo escuro mas não são pretas.Qualquer uma amamenta a sua prol com um carinho mudo de difícil compreensão a humanos.Qualquer leoa sabe deitar-se pra oferecer o peito carregado
cor-de-rosa inchado
a criaturazinhas pequenas com gengivas a fingir de dentes. Amamentam-nos.
Raramente as mordem: dificilmente as ferem.
Se o fazem é por uma patada irreflectida, um deitar descomposto: se as magoam será sobretudo sem querer.
E lambem-lhes o sangue quando ele cai. E lavam-lhes o focinho com a língua esticada fora da boca.



E tu, sweet mother: Porque é que nunca me fizeste isto? Vou-me embora e tu não sabes.
Adormeceste no sofá com a televisão ligada. Oiço a novela do meu quarto. Sempre tiveste uma tendência estranha para as novelas mexicanas do canal 44.São as piores.

Penso em fazer malas e evadir-me daqui a pouco: quando o sol nascer e for dia.
Sairei de malas feitas, pela calada, assinando sentença de culpa sem a ter. Sou uma ingrata.
Mudar de mundo e de planeta, sabendo que te farei chorar, que sentirás a minha falta, que sofro por te saber doer, e que tem tudo mesmo de ser assim.
Não acredito que isso faça de mim uma criminosa, mas talvez faça.
E tu não és como as leoas Africanas ainda que saiba que serás destrutiva na interiorização do meu não-regresso.
Sempre soubeste que dou dentadas no cordão umbilical desde o dia em que nasci.


Sofrerás, bem sei. Lamento tudo, mas lamento mais o facto triste dos nossos mundos nunca terem podido marcar uma hora para tomar café.
Preciso de espaço, de tempo e de muita liberdade solta para explorar o mundo novo que me deste no momento em que decidiste abrir pernas pra me fazer nascer. Foste tu que as decidiste abrir. Eu não pedi nada.
Mas sim, também sei que te devia estar agradecia eu sei,
- Sim.. doeu-te um bocado, pois sim.... tudo a ferros...E sim, já sei, engordaste imenso.

A tua barriga nunca mais voltou a ser aquilo que foi. Sempre me disseste.

E tenho pena que não entendas que ser mãe deve ser muito mais do que umas estrias gordas e brancas coladas à pele da barriga.
Vou-me embora e não arranjei a coragem necessária pra te dizer. Tenho medo que te saias com uma frasezinha infeliz que me faça ir antes do previsto sem cumprir o ritual que estipulei, ou que me faças chorar impedindo-me a viagem. Sou uma estupida sensível, eu sei, sempre me disseste.


Não sei o que acontecerá daqui para a frente. Espero que não chores muito, mas achar que te vais rir dá-me dores de estomago. Prefiro a ideia do choro compulsivo.
Conheço-te o suficiente para saber sentirás vergonha de ti, nem é de mim, é de ti, por teres engravidado de um homem feio que não amavas e por teres tido dele uma filha como eu.

Depois de tanta catequese e de tanta oração, eis-me irrecuperável e pouco decente.

Queria aproveitar pra me confessar-me a ti, corpo materno, pedir desculpas por culpas soltas na alma que quero agora rematar e quantificar contigo. Por ter perdido a virgindade no banco de trás do primeiro rapaz que me apareceu,
por te assaltar o porta moedas desde os dez anos,
por ter dormido com vários homens na tua cama e ter gostado,
por ter começado a fumar aos treze,
por ter aparecido na tua festa de anos com o cabelo loiro e as sobrancelhas pretas,
por ter colocado pedaços de unhas dos pés no café dos teus namorados.

(porque é que sempre me mandavas cortar as unhas no meio dos desenhos animados?)

Por me deitar de forma ostensiva com o primeiro nojento que diz que me ama
(e eles nem tem de se esforçar muito, basta dizer baixinho, com a boca encostada no meu ouvido, que logo me começo a despir...)

Tenho este lado de cabra sedutora que herdei de ti. Os genes são teus arquétipos.
Só Bach me alegra nestas ocasiões e nem foste tu que mo apresentaste: fui eu quem o descobriu sozinha, da mesma forma que descobri como juntar leite nas papas da Cerelac pra comer antes de ir para a escola, da mesma forma que aprendi a atar os tennis sem o teu auxílio.
Como podemos ser tão diferentes se eu vim de ti e tu és de mim?

Precisava de alguém aqui. De vez enquando preciso. Quem quer que seja.
Tu nunca percebeste nada daquilo que te quis dizer.
Que sempre que me ia deitar ao pé de ti de chucha, era expulsa do teu quarto porque havia alguém na cama. Que sempre que me tentava enroscar em ti era hora de ires para o escritório, naquele teu velho papel de secretária e amante que sempre fizeste tão bem.
Recuso-me a acreditar que aquele monstro amorfo, careca, que cospe para o chão e te subjulga de forma ordinária seja, em pessoa, a tríade imperfeita:

teu dono teu patrão meu pai.

Não sei se te esforçaste e não conseguiste, ou se nem um esforço ligeiro terás feito pra sermos as duas uma família de verdade. E todos acham que tu és a maior.
Vou sofrer se te acontecer alguma coisa. Sei que vou ser torturada pelo remorso de te ter causado desgosto, mas se o não fizer serei maltratada pela triste dor de nunca ter chegado a fazer.
Não pedi nada disso, mas vem tudo no pacote.

Encontrei uma pessoa diferente(bem sei que sempre digo o mesmo mas desta vez ele diz que quer tomar conta de mim. Peço-lhe que o faça só um bocadinho, que me dê colo)
Ele diz que posso demorar o tempo que quiser no colo dele, que não tem pressa em me
des-
colar dele.

Ando mesmo a precisar de colo, mas acaba sempre por ser somente por alguns segundos: sempre me ensinaste a ocupar pouco tempoàs pessoas.
Bem sabes que odeio fazer-me de vítima, que o faço mal, mas ainda tenho medo. Medo. O medo. Um medo líquido que se cola às paredes da alma e ninguém o faz sair. Medo.
É o medo que faz o mundo girar, o medo e a raiva, e não o amor como sempre acreditei, nem o dinheiro como sempre insinuaste.
É o e a
medo raiva.

Amanhã, viste como vai ter o tempo?chuva?
Vou deixar o papel num dos anões do frigorifico e levo a minha tralha. Não levo fotografias. Limpei o quarto.
Levo toda a roupa.
No papel explico.
Deixei-te beijinhos.Digo-te lá que me vou embora de livre vontade, que não quero que me procures, que vou absolutamente consciente, e que sei bem o que estou a fazer.

Telefono-te assim que chegar a algum sítio em condições. Sei que se te telefonar antes notarás o desespero na minha voz e te atemorizarás desnecessariamente.
É o orgulho que herdei de ti me impedirá sempre de voltar.
De qualquer forma amo-te.
De qualquer forma, muito.


3 comentários:

Pacalis disse...

Triste...
mas de uma escrita Simplesmente Bela e Fabulosa, alguém um dia disse que os melhores textos/livros são aqueles que nos despertam emoções...
este é um deles sem dúvida

Anónimo disse...

Na vida a complexidade é apenas o manto de fumo que não nos deixa ver os contornos do que realmente é.Tudo tão simples....

Beijo:
Vasco Veiga

Anónimo disse...

Forte, mesmo muito forte.
Até me custa crer que o tenhas escrito aqui...
Muito bom mesmo, gostava de poder dizer algo mais, mas sinto que sei muito pouco para sequer me por a mandar palpites sobre...

greg