Queria dizer ao teu corpo
- olá
porque a cama onde estamos deitados foi partida por nós:
por nós vestidos
- nós ali no chão, nós ali na janela, nós ali na cozinha, nós lá em baixo na escuridão da noite Lisboeta que se declara na calçada
nas pessoas, nos cheiros dos poemas da noite da cidade que é nossa
e eu e tu deitados numa cama emprestada e podre, a sentirmos coisas diferentes a pensar as coisas diferentes que ardem dentro
- não te conheço mas gosto de ti: podes olhar para mim aqui?
e tu resolveste olhar para o tecto em vez de olhares para mim.
Apetecia-me ser uma aranha no tecto: acenar-te-ia com a pata preta esquerda e gritar-te-ia
- aquece-me
aposto que te acharias louco.
- dizem que eu enlouqueço as pessoas, sabes?
Não acredites, sim?juro-te que é mentira, juro-te que não estão bocados de mim aqui em cima desta cama partida onde estamos deitados, juro-te que não há bocados de mim a escorrer por esta parede branca de cal,
porque juro, juro-te, juro-te que me portei bem
que a faca da cozinha
que eu e a faca da cozinha
nós as duas: eu a faca de cozinha
e os meus pulsos
ás vezes
encontramo-nos e fazemos desenhos na carne
(desenhos bonitos, juro)
juro-te, olha para mim, juro-te, deixa a parede e olha-me
zangamo-nos e já não somos amigas: eu e a faca da cozinha já não brincamos mais quando a mamã se deita depois da novela.
Queria perguntar-te coisas sobre ti mas tenho os pés frios. Queria saber de ti
- queria que soubesses de mim
porque a tua timidez guarda lugares que me apetecia conhecer
- deixas-me entrar?
e queria dizer-te que te acho bonito, que notei em ti vestigios de uma barba a rasgar-te a pele:
a pele escondida a desenhar um queixo que não pede geometria.
Não usas perfume. Não sinto odores que te definam, e olho-te carinhosa em soslaios possivéis.
- seriamos irmãos ou amantes?
Ignoras-me deitada ao teu lado
- e se eu me deitasse aqui nua, ou se me cortasse à tua frente?
talvez tivesses pena de mim
(promete-me que nunca vais sentir pena de mim)
juro-te que não fiz nada, juro-te que
e dás os teus olhos, em continuidade, ao tecto branco acima de nós como se nele houvesse qualquer coisa que em mim não há. Queria te dizer que me dói
- dói-me cá dentro, sabes?
e queria mostrar-te onde e porquê.
O tempo invade a nossa intimidade de estranhos e o relógio da cozinha dá voltas.
Queria que nos visses agora
- olha para nós ali, por favor estamos de lado a olhar a parede erguida à nossa frente e um silêncio reza entre nós.
Parecemos estranhos. Somos estranhos. Não sei nada de ti. Não sabes nada de mim.
A minha mão quer dizer olá á tua
- olá mão
mas não tem coragem de lhe chegar perto.
Não queria despir-me para ti , perdoa-me
(estraga sempre tudo, sabes?)
- davas-me colo se eu pedisse?
Não pises as minhas patas peludas, por favor.
Sou apenas uma aranha preta de calças de ganga com os pés frios.
terça-feira, junho 28, 2005
sexta-feira, junho 24, 2005
E se te despisses?
Perdida por seis horas na savana africana, a saber falar pouco Shangana, a saber falar pouco português
- a língua havia enferrujado e não sabia formar vogais palatais.
Policia, congregações. Gente à procura de um corpo por todo o lado.
Eu e esse corpo ali, juntos, entre as estrelas e o cheiro da noite quente
a pedir à terra para entrar nela:
eu e o meu corpo achados num não-retorno, a pedir baixinho ao céu afrivcano para me tirar dali.
E depois disso, depois de ter tomado banho e ter comido,deitada na cama horas mais tarde:
lembrei-me daquele bebé com a mãe na igreja ao meu lado.
Ele e ela.
Ele a reclamar a legitimidade de lhe desapertar a blusa azul em território sagrado no desejo de por à boca uma mama imensa, um seio rijo de leite grosso branco.
Ela a saber aceitar-lhe a boca como parte do seu corpo.
Lembrei-me deles e de mim. Da inveja que senti da solenidade daquilo que se passava ali ao meu lado, da intimidade daqueles dois, da religiosidade do momento:
ela a aconchegá-lo sem o notar
ele a dormir farto de boca colada ao bico do peito negro dela deprezando saciado o veio de leite anónimo que se esgueirava pelo canto da sua boca pequena bem desenhada.
Queria ser ela e queria que ele fosse meu.
Eu.Ele, ela e a ventoinha do meu quarto.
Deixei de olhar a ventoinha do tecto, empurrei os cobertores para baixo e despi-me.
Dormi aninhada no meu corpo e prometi-lhe que no dia seguinte
- eu jurei-lhe que no dia seguinte
iamos dançar os dois lá fora ao sol, em nudez exposta, no jardim onde as flores falam e a lua ri.
Is it just me or is it cold in here?
Excerto de uma conversa num recém inaugurado parque infantil nos arredores de Maputo, entre uma fêmea adulta branca num baloiço vermelho e uma fêmea negra a fazer-se num baloiço verde.
F.A.F- Porque é que está toda a gente a dizer que vais embora?
F.A- Tenho de voltar, baixinha. Voltar para a minha mamã.
F.A.F- Tens mamã?
F.A.- Tenho. E tenho uma cadela.
( tenho mamã sim, uma sexagenária cheia de graça)
F.A.F.- Tens um cão?
F.A.- Tenho. É para acabar o curso, sabes?
(para o acabar.....para deixar de pensar que ando com ele preso na garganta)
F.A.F- Mas a tua casa é longe, não é?
F.A.- Um bocado. Vais de avião.
(Demasiado longe, sabes? Demasiado longe.)
F.A.F- Não quero que vás.
F.A.- sorri, baixa os olhos.
(Não queria ir, sabes? Acho que vão ter de me empurrar para entrar naquele avião amanhã)
F.A.F- Podes levar-me?
F.A.- Quando estiver lá hei-de mandar-te muitas coisas, sabes?...vou mandar coisas para ti.
F.A.F.- Não me vais levar?
F.A.- Vou mandar vir roupa, chocolates, treme-treme vermelho...
F.A.F.- Eu não tenho mamã...posso ir contigo se me levares...
F.A- Queres o quê? Pede-me tudo o que quiseres que eu mando
F.A.F.- Já não gostas de mim?
F.A.- Vou gostar sempre muito de ti....daqui até lá acima...
(amo-te muito, sabes? Tenho mesmo de ir, sabes? Promete-me que não choras quando eu for, promete...)
F.A.F- E se disseres á tua mamã que já não vais?
F.A- Se soubesses como ela é....vinha-me buscar...
F.A.F- E se lhe dissesses que me vais levar?
F.A.- Não queres escorrega?...queres escorrega ou upa?
(ela ia apaixonar-se por ti como eu me apaixonei)
F.A.F.- Quero ir para tua casa quando tu fores.
F.A.- E eu quero nenêcar-te...anda cá baixinha, dá bá....
A fêmea adulta branca nenêcou a fêmea negra a fazer-se...
Dizem que foram felizes para sempre.
- a língua havia enferrujado e não sabia formar vogais palatais.
Policia, congregações. Gente à procura de um corpo por todo o lado.
Eu e esse corpo ali, juntos, entre as estrelas e o cheiro da noite quente
a pedir à terra para entrar nela:
eu e o meu corpo achados num não-retorno, a pedir baixinho ao céu afrivcano para me tirar dali.
E depois disso, depois de ter tomado banho e ter comido,deitada na cama horas mais tarde:
lembrei-me daquele bebé com a mãe na igreja ao meu lado.
Ele e ela.
Ele a reclamar a legitimidade de lhe desapertar a blusa azul em território sagrado no desejo de por à boca uma mama imensa, um seio rijo de leite grosso branco.
Ela a saber aceitar-lhe a boca como parte do seu corpo.
Lembrei-me deles e de mim. Da inveja que senti da solenidade daquilo que se passava ali ao meu lado, da intimidade daqueles dois, da religiosidade do momento:
ela a aconchegá-lo sem o notar
ele a dormir farto de boca colada ao bico do peito negro dela deprezando saciado o veio de leite anónimo que se esgueirava pelo canto da sua boca pequena bem desenhada.
Queria ser ela e queria que ele fosse meu.
Eu.Ele, ela e a ventoinha do meu quarto.
Deixei de olhar a ventoinha do tecto, empurrei os cobertores para baixo e despi-me.
Dormi aninhada no meu corpo e prometi-lhe que no dia seguinte
- eu jurei-lhe que no dia seguinte
iamos dançar os dois lá fora ao sol, em nudez exposta, no jardim onde as flores falam e a lua ri.
Is it just me or is it cold in here?
Excerto de uma conversa num recém inaugurado parque infantil nos arredores de Maputo, entre uma fêmea adulta branca num baloiço vermelho e uma fêmea negra a fazer-se num baloiço verde.
F.A.F- Porque é que está toda a gente a dizer que vais embora?
F.A- Tenho de voltar, baixinha. Voltar para a minha mamã.
F.A.F- Tens mamã?
F.A.- Tenho. E tenho uma cadela.
( tenho mamã sim, uma sexagenária cheia de graça)
F.A.F.- Tens um cão?
F.A.- Tenho. É para acabar o curso, sabes?
(para o acabar.....para deixar de pensar que ando com ele preso na garganta)
F.A.F- Mas a tua casa é longe, não é?
F.A.- Um bocado. Vais de avião.
(Demasiado longe, sabes? Demasiado longe.)
F.A.F- Não quero que vás.
F.A.- sorri, baixa os olhos.
(Não queria ir, sabes? Acho que vão ter de me empurrar para entrar naquele avião amanhã)
F.A.F- Podes levar-me?
F.A.- Quando estiver lá hei-de mandar-te muitas coisas, sabes?...vou mandar coisas para ti.
F.A.F.- Não me vais levar?
F.A.- Vou mandar vir roupa, chocolates, treme-treme vermelho...
F.A.F.- Eu não tenho mamã...posso ir contigo se me levares...
F.A- Queres o quê? Pede-me tudo o que quiseres que eu mando
F.A.F.- Já não gostas de mim?
F.A.- Vou gostar sempre muito de ti....daqui até lá acima...
(amo-te muito, sabes? Tenho mesmo de ir, sabes? Promete-me que não choras quando eu for, promete...)
F.A.F- E se disseres á tua mamã que já não vais?
F.A- Se soubesses como ela é....vinha-me buscar...
F.A.F- E se lhe dissesses que me vais levar?
F.A.- Não queres escorrega?...queres escorrega ou upa?
(ela ia apaixonar-se por ti como eu me apaixonei)
F.A.F.- Quero ir para tua casa quando tu fores.
F.A.- E eu quero nenêcar-te...anda cá baixinha, dá bá....
A fêmea adulta branca nenêcou a fêmea negra a fazer-se...
Dizem que foram felizes para sempre.
sábado, junho 18, 2005
Sweet Daddy,
Ontem quando me ia deitar tentei lembrar-me de ti mas não consegui.
O teu rosto não me surgiu nítido, memorizei certas rugas perto dos olhos,
um queixo similar ao meu, um tom de olhos diferente dos meus castanhos.
Esforçei-me mas não consegui mais do que isto:
Lembro-me que és pequeno
(homem pequeno, velhaco ou dançarino)
e que não sabes dançar.
Não sei porque me lembro tão pouco de ti.
Recordo que não estavas entre os espectadores quando me vesti de Casa dos Bicos
(entre uma Torre Eiffel russa que coçava o rabo e uma Tower Bridge que me beliscava nas deixas)
e lembro-me que não te vi no meu primeiro dia de aulas.
Lembro-me que não exististe para me ir buscar ao colégio nos dias de ir ao médico
(a minha mãe sempre a correr, sempre lá)
e lembro-me que nunca me deste a mão no percurso difícil
- sala--casa-de-banho/casa-de-banho--saladepois da vontade de fazer xixi se ter tornado insuportável.
Lembro-me que era a minha mãe sempre.
Lembro-me de ser a mão dela a segurar a minha desde aquele dia
aquele dia da maca
das batas à minha volta para me agarrar
(a punçãozinha, recordas?)
O dia da punção, da dor da agulha a entrar em mim com dois anos
a dor a que não foste capaz de assistir por mal-estar: a tua fuga cobarde da sala por não conseguires suportar o cheiro forte do amoníaco hospitalar
(ou o cheiro forte da minha dor, o cheiro forte dos meus gritos que te davam náuseas e vómitos, que te deixavam indisposto?)
-minha senhora, não existe dor mais forte do que a de uma agulha a entrar-nos na coluna: é melhor que fique o pai ou a mãe
e a minha mae ali ao meu lado, a agarrar-me o corpo ouvindo-me os gritos de olhos rasos de água entalada: a colocar-me a mão no rosto molhado.
As mãos quentes dela em mim a pôr-me no seu colo depois de uma seringa de líquido amarelo ser colocada num tubo, depois de eu ter deixado de chorar exausta e suada num sono cansado e magoado dormido entre soluços sentidos, depois de eu entender que o colo que me havia entregue aos médicos maus era o único que me completava o corpo pequeno.
De ti nem sombra: só o vazio que sempre soubeste encher.
Não me lembro de ti quando tive sarampo ou febre. Lembro-me de ti apenas em curtos flashes.
Lembro-me de fugir de ti na creche quando aparecias sem a minha mãe saber,
na hora do iogurte
e eu levava-me
a mim
a ele
e à colher
de gatas por baixo das mesas pequeninas do refeitório até à lavandaria onde comia escondida e silenciosa enquanto vos ouvia à minha procura
(o iogurte sabia a desinfectante, tinha de impedir o espirro que me nascia no nariz pelo cheiro do sabão, mas sempre acreditei que tudo era melhor a ir contigo)
Curiosamente é a tua imagem que me surge limpa em duas situações:
quando recordo a causa do meu pavor do escuro do breu
(deixaste-me sozinha fechada num quarto de uma roulotte com quatro anos de idade, quando juraste que ias telefonar à minha mãe para ela me vir buscar, com te havia pedido assim que percebi o meu pijama em cima do sofá: adormeci de vestido vermelho, completamente rouca de tanto ter gritado trancada)
e lembro-me de ti melhor ainda, sempre que oiço o meu relógio biológico a fazer
tic-tac
tic-tac
e penso nos dez filhos que quero ter ao lado da figura masculina necessária:
o medo de errar impede-me de acertar.
O teu rosto não me surgiu nítido, memorizei certas rugas perto dos olhos,
um queixo similar ao meu, um tom de olhos diferente dos meus castanhos.
Esforçei-me mas não consegui mais do que isto:
Lembro-me que és pequeno
(homem pequeno, velhaco ou dançarino)
e que não sabes dançar.
Não sei porque me lembro tão pouco de ti.
Recordo que não estavas entre os espectadores quando me vesti de Casa dos Bicos
(entre uma Torre Eiffel russa que coçava o rabo e uma Tower Bridge que me beliscava nas deixas)
e lembro-me que não te vi no meu primeiro dia de aulas.
Lembro-me que não exististe para me ir buscar ao colégio nos dias de ir ao médico
(a minha mãe sempre a correr, sempre lá)
e lembro-me que nunca me deste a mão no percurso difícil
- sala--casa-de-banho/casa-de-banho--saladepois da vontade de fazer xixi se ter tornado insuportável.
Lembro-me que era a minha mãe sempre.
Lembro-me de ser a mão dela a segurar a minha desde aquele dia
aquele dia da maca
das batas à minha volta para me agarrar
(a punçãozinha, recordas?)
O dia da punção, da dor da agulha a entrar em mim com dois anos
a dor a que não foste capaz de assistir por mal-estar: a tua fuga cobarde da sala por não conseguires suportar o cheiro forte do amoníaco hospitalar
(ou o cheiro forte da minha dor, o cheiro forte dos meus gritos que te davam náuseas e vómitos, que te deixavam indisposto?)
-minha senhora, não existe dor mais forte do que a de uma agulha a entrar-nos na coluna: é melhor que fique o pai ou a mãe
e a minha mae ali ao meu lado, a agarrar-me o corpo ouvindo-me os gritos de olhos rasos de água entalada: a colocar-me a mão no rosto molhado.
As mãos quentes dela em mim a pôr-me no seu colo depois de uma seringa de líquido amarelo ser colocada num tubo, depois de eu ter deixado de chorar exausta e suada num sono cansado e magoado dormido entre soluços sentidos, depois de eu entender que o colo que me havia entregue aos médicos maus era o único que me completava o corpo pequeno.
De ti nem sombra: só o vazio que sempre soubeste encher.
Não me lembro de ti quando tive sarampo ou febre. Lembro-me de ti apenas em curtos flashes.
Lembro-me de fugir de ti na creche quando aparecias sem a minha mãe saber,
na hora do iogurte
e eu levava-me
a mim
a ele
e à colher
de gatas por baixo das mesas pequeninas do refeitório até à lavandaria onde comia escondida e silenciosa enquanto vos ouvia à minha procura
(o iogurte sabia a desinfectante, tinha de impedir o espirro que me nascia no nariz pelo cheiro do sabão, mas sempre acreditei que tudo era melhor a ir contigo)
Curiosamente é a tua imagem que me surge limpa em duas situações:
quando recordo a causa do meu pavor do escuro do breu
(deixaste-me sozinha fechada num quarto de uma roulotte com quatro anos de idade, quando juraste que ias telefonar à minha mãe para ela me vir buscar, com te havia pedido assim que percebi o meu pijama em cima do sofá: adormeci de vestido vermelho, completamente rouca de tanto ter gritado trancada)
e lembro-me de ti melhor ainda, sempre que oiço o meu relógio biológico a fazer
tic-tac
tic-tac
e penso nos dez filhos que quero ter ao lado da figura masculina necessária:
o medo de errar impede-me de acertar.
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