terça-feira, junho 28, 2005

Martini till the end

Queria dizer ao teu corpo

- olá
porque a cama onde estamos deitados foi partida por nós:
por nós vestidos

- nós ali no chão, nós ali na janela, nós ali na cozinha, nós lá em baixo na escuridão da noite Lisboeta que se declara na calçada
nas pessoas, nos cheiros dos poemas da noite da cidade que é nossa


e eu e tu deitados numa cama emprestada e podre, a sentirmos coisas diferentes a pensar as coisas diferentes que ardem dentro

- não te conheço mas gosto de ti: podes olhar para mim aqui?
e tu resolveste olhar para o tecto em vez de olhares para mim.

Apetecia-me ser uma aranha no tecto: acenar-te-ia com a pata preta esquerda e gritar-te-ia

- aquece-me

aposto que te acharias louco.

- dizem que eu enlouqueço as pessoas, sabes?

Não acredites, sim?juro-te que é mentira, juro-te que não estão bocados de mim aqui em cima desta cama partida onde estamos deitados, juro-te que não há bocados de mim a escorrer por esta parede branca de cal,

porque juro, juro-te, juro-te que me portei bem
que a faca da cozinha
que eu e a faca da cozinha
nós as duas: eu a faca de cozinha
e os meus pulsos
ás vezes
encontramo-nos e fazemos desenhos na carne
(desenhos bonitos, juro)


juro-te, olha para mim, juro-te, deixa a parede e olha-me

zangamo-nos e já não somos amigas: eu e a faca da cozinha já não brincamos mais quando a mamã se deita depois da novela.




Queria perguntar-te coisas sobre ti mas tenho os pés frios. Queria saber de ti
- queria que soubesses de mim

porque a tua timidez guarda lugares que me apetecia conhecer
- deixas-me entrar?

e queria dizer-te que te acho bonito, que notei em ti vestigios de uma barba a rasgar-te a pele:
a pele escondida a desenhar um queixo que não pede geometria.

Não usas perfume. Não sinto odores que te definam, e olho-te carinhosa em soslaios possivéis.
- seriamos irmãos ou amantes?


Ignoras-me deitada ao teu lado

- e se eu me deitasse aqui nua, ou se me cortasse à tua frente?
talvez tivesses pena de mim

(promete-me que nunca vais sentir pena de mim)


juro-te que não fiz nada, juro-te que

e dás os teus olhos, em continuidade, ao tecto branco acima de nós como se nele houvesse qualquer coisa que em mim não há. Queria te dizer que me dói
- dói-me cá dentro, sabes?

e queria mostrar-te onde e porquê.





O tempo invade a nossa intimidade de estranhos e o relógio da cozinha dá voltas.
Queria que nos visses agora
- olha para nós ali, por favor estamos de lado a olhar a parede erguida à nossa frente e um silêncio reza entre nós.

Parecemos estranhos. Somos estranhos. Não sei nada de ti. Não sabes nada de mim.
A minha mão quer dizer olá á tua

- olá mão

mas não tem coragem de lhe chegar perto.
Não queria despir-me para ti , perdoa-me
(estraga sempre tudo, sabes?)
- davas-me colo se eu pedisse?

Não pises as minhas patas peludas, por favor.
Sou apenas uma aranha preta de calças de ganga com os pés frios.

2 comentários:

Anónimo disse...

és bela

*
rose

Anónimo disse...

casamos?