sábado, junho 18, 2005

Sweet Daddy,

Ontem quando me ia deitar tentei lembrar-me de ti mas não consegui.

O teu rosto não me surgiu nítido, memorizei certas rugas perto dos olhos,
um queixo similar ao meu, um tom de olhos diferente dos meus castanhos.
Esforçei-me mas não consegui mais do que isto:

Lembro-me que és pequeno

(homem pequeno, velhaco ou dançarino)

e que não sabes dançar.

Não sei porque me lembro tão pouco de ti.

Recordo que não estavas entre os espectadores quando me vesti de Casa dos Bicos

(entre uma Torre Eiffel russa que coçava o rabo e uma Tower Bridge que me beliscava nas deixas)

e lembro-me que não te vi no meu primeiro dia de aulas.



Lembro-me que não exististe para me ir buscar ao colégio nos dias de ir ao médico

(a minha mãe sempre a correr, sempre lá)
e lembro-me que nunca me deste a mão no percurso difícil

- sala--casa-de-banho/casa-de-banho--saladepois da vontade de fazer xixi se ter tornado insuportável.
Lembro-me que era a minha mãe sempre.

Lembro-me de ser a mão dela a segurar a minha desde aquele dia
aquele dia da maca
das batas à minha volta para me agarrar
(a punçãozinha, recordas?)


O dia da punção, da dor da agulha a entrar em mim com dois anos
a dor a que não foste capaz de assistir por mal-estar: a tua fuga cobarde da sala por não conseguires suportar o cheiro forte do amoníaco hospitalar

(ou o cheiro forte da minha dor, o cheiro forte dos meus gritos que te davam náuseas e vómitos, que te deixavam indisposto?)

-minha senhora, não existe dor mais forte do que a de uma agulha a entrar-nos na coluna: é melhor que fique o pai ou a mãe

e a minha mae ali ao meu lado, a agarrar-me o corpo ouvindo-me os gritos de olhos rasos de água entalada: a colocar-me a mão no rosto molhado.
As mãos quentes dela em mim a pôr-me no seu colo depois de uma seringa de líquido amarelo ser colocada num tubo, depois de eu ter deixado de chorar exausta e suada num sono cansado e magoado dormido entre soluços sentidos, depois de eu entender que o colo que me havia entregue aos médicos maus era o único que me completava o corpo pequeno.

De ti nem sombra: só o vazio que sempre soubeste encher.

Não me lembro de ti quando tive sarampo ou febre. Lembro-me de ti apenas em curtos flashes.
Lembro-me de fugir de ti na creche quando aparecias sem a minha mãe saber,
na hora do iogurte

e eu levava-me
a mim
a ele
e à colher
de gatas por baixo das mesas pequeninas do refeitório até à lavandaria onde comia escondida e silenciosa enquanto vos ouvia à minha procura
(o iogurte sabia a desinfectante, tinha de impedir o espirro que me nascia no nariz pelo cheiro do sabão, mas sempre acreditei que tudo era melhor a ir contigo)


Curiosamente é a tua imagem que me surge limpa em duas situações:
quando recordo a causa do meu pavor do escuro do breu

(deixaste-me sozinha fechada num quarto de uma roulotte com quatro anos de idade, quando juraste que ias telefonar à minha mãe para ela me vir buscar, com te havia pedido assim que percebi o meu pijama em cima do sofá: adormeci de vestido vermelho, completamente rouca de tanto ter gritado trancada)

e lembro-me de ti melhor ainda, sempre que oiço o meu relógio biológico a fazer
tic-tac
tic-tac
e penso nos dez filhos que quero ter ao lado da figura masculina necessária:
o medo de errar impede-me de acertar.

1 comentário:

Luis F. Cristóvão disse...

é curioso como todas as pessoas que, como nós, vivem num mundo paralelo de pequenas torturas e desavenças diárias connosco mesmos, têm um alguém pendurado na parede de há muito tempo, sempre pronto para nos lembrar que não somos livres.