As horas doem-me nos olhos quando os abro para me ver.
O cansaço tomou-me de ponta, testando-me em limites de exaustão nunca antes propostos: eu estou pronta a morrer de amor por ti, só.
Estou grávida no canto da boca, no contorno dos dedos.
Tenho reproduções nossas em todas as partes do meu corpo, sei vê-las no espelho pela manhã quando me dirijo a ele para dizer-lhe
olá
- olá espelho, olá a mim no espelho
Os teus dedos fazem falta ao meu corpo, e tudo se transforma à minha volta num enorme circuito de chávenas de chá vazias em noites por encher.
A certeza do teu regresso ao fim do dia faz geribérias crescer-me na raiz das unhas.
quarta-feira, abril 26, 2006
quinta-feira, abril 13, 2006
A Mosca
Esta pequena hora,
sem o teu vulto, sem a tua espera,
foi uma hora triste;
foi como quando se acorda em primavera
já quando a primavera não existe.
(Figueira da Foz, 14 de Agosto de 1939: Miguel Torga)
A primavera sentou-se no carro e partiu.
Eras tu quem guiava o carro e eu não percebi. Colei o meu rosto triste ao vidro da janela e assisti-vos na partida.
Os meus olhos acompanharam-vos enquanto puderam e ficamos na janela a sofrer os três:
eu e os meus olhos.
Apareceu sem avisar uma varejeira na janela; matei-a com a ponta gentil dos dedos da mão direita virando-lhe o corpo de barriga para cima
- sem medo, sem pena
e soube esmagá-la atenciosamente pressionando os meus dois dedos lúcidos nela.
Imediamente os senti húmidos de morte. Era a minha mão assassina que sentia o sangue semi-frio
- como o doce da pastelaria que leva chocolate e chantilly
o sangue semi-frio da mosca: os meus dedos sujos do sangue da mosca gorda morta no vidro da janela grande do meu quarto.
O tempo da mosca se apartou.
quinta-feira, abril 06, 2006
Amo-te tudo
- Olha assim para mim e diz que me amas como fazes quando me queres despir
Sirvo-te uma sopa vermelha de sangue, uma sopa de bocados de carne da minha barriga que agora trago tapada em tecido para que não a saibas assim, para que não me descubras arquitecta de malvadez
- não quero que vás embora mas não aprendi a dizê-lo
tens malas feitas e tomas a tua última refeição nesta casa como se nada fosse, como se eu nada mais te fosse
- olha assim para mim e diz que me amas quando
a sopa quente fervilha no teu prato e eu olho em angústia a forma bruta como levas a colher aos lábios: bocados de mim a entrar em ti como eu sempre quis, como eu sempre desejei
- porque é que nunca me deste um filho ?
e eu
- um filho
a crescer-me na barriga arrancada
olho-te de soslaio enquanto
- sempre quis um filho teu
enquanto me como, enquanto me como também a mim na minha última sopa contigo
quente
uma sopa quente de carne minha : tenho mais pedaços de carne minha a ferver ao lume, fiz mais a contar com a tua fome de mim.
Eu gosto mais do suco da sopa, tu gostas mais da carne
- sempre nos completámos assim por partes, vizinha
Depois de ires vou-me sentar a chorar para ver televisão. Vou sentir daqui os teus passos até às malas, vou saber daqui o momento em que fechaste a porta e te foste de mim.
Aqui me saberei para sempre.
"To fear love is to fear life, and those who fear life are already three parts dead."
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