Lisboa, 15 de Maio de 1946
Tive ontem uma visão do futuro, em que uma mulher se sentava ao meu lado no comboio e me questionava:
- a menina mata pessoas com os olhos, não mata?
E eu respondia,
- sim, mas não é bem com os olhos, é só com as unhas dos pés, não sei se lhe faz diferença?
Assustei-me.
Oiço vozes quando estou sozinha, sei aperceber-me que são duas vozes femininas que se juntaram-me para me torturar.
Bebo o meu chá no quarto porque a minha mãe não me deixa sair.
Trouxe-me maçãs. Comias. Todas.
Amei as duas maçãs desde o momento em que ela as trouxe para o meu quarto.
Transformei-me em cada uma enquanto as comia, como se fosse eu a trincada, e os meus próprios dentes se tornassem parte dessa carne de fruta por
osmose emocional,
pela osmose dos afectos
- porque desde pequena, no fim de uma refeição em familia, que eu desejo secretamente ser uma maçã vermelha,
despida num prato de loiça francesa
aberta
servida crua.
Sonhei que havia ficado grávida
do filho do dono da farmácia Assunção
por ele me ter olhado para as pernas
numa terrível aflição.
Não sei se me olhava assim por ter umas pernas bonitas, ou se por estarem crivadas de cortes.
Sei que o olhar dele me havia engravidado e eu vim a casa pedir ajuda para ter um filho que me saiu pela boca.
E todos os médicos disseram que eu tinha uns óptimos maxilares para parir.
Quando acordei, ainda tinha bocados de placenta nos lábios porque ele saiu-me mas o que era dele ficou em mim.
Ficou.
2 comentários:
O Tempo...
Gostava de saber... porque espero por ti... e não apareces...
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