terça-feira, novembro 30, 2010

Roubar o que é dos outros, quando nada há para dizer

POEMA DE MARIA TERESA HORTA







Morrer de Amor

Morrer de amor
ao pé da tua boca

Desfalecer
a pele do sorriso

Sufocar de prazer
com o teu corpo

Trocar tudo por ti
se for preciso.

segunda-feira, novembro 15, 2010

O homem que não gostava de poesia

O homem que não gostava de poesia sabe fazer contas de cabeça, subtrai o IVA ao preço dos produtos em menos de 3 segundos, e é do Benfica.
O homem que não gostava de poesia não dança com a mulher em cima do tapete da sala mas gosta dela com o olhar, sabe por ordem cronológica todas as vitórias de José Mourinho e gosta de viajar nas férias de Agosto para países quentes.
O homem que não gostava de poesia passa a ferro as suas camisas do trabalho, faz as compras de casa no LIDL e pensa ter dois filhos.
O homem que não gostava de poesia só chora quando não aguenta mais a dor que lhe esmaga o peito, gosta de beber cerveja com os amigos e ver a bola no café: escreve cartões de amor com dificuldade porque é com dificuldade que fala do que sente no seu coração.

O homem que não gostava de poesia vai ver os pais ao domingo e tem uma ternura especial pela sua tia de pequena estatura.
O homem que não gostava de poesia canta sempre a mesma música ao ouvido da sua mulher (com isto sabe que ela vai derreter à noite no seu corpo) e diz-lhe que a ama quando se lembra dela.
O homem que não gostava de poesia tem medo do dia em que a sua avó não esteja cá para o afagar, nunca roeu as unhas e fuma na janela do escritório.
O homem que não gostava de poesia tem ganho concursos de fotografia e sorri para dentro com as suas vitórias: o homem que não gostava de poesia é ambicioso e gosta de ganhar.
O homem que não gostava de poesia acredita que a beleza da sua mulher reside na forma como ela se despe para ele e não gosta de a ver emagrecer. O homem que não gostava de poesia nunca leu Pessoa nem Sophia nem Sá-Carneiro e desconfia que Gabriela LLansol seja uma marca de detergente para a roupa.

Mas o homem que não gostava de poesia, ao contrário de todos os outros, é um homem feliz.

quinta-feira, outubro 28, 2010

Cartas a M. - XIX carta

Querida M.,


Não preciso de mais ninguém para além de mim própria.
Nunca vou precisar.


De qualquer forma, apareceu ontem o corpo. Vinha na minha direcção porque me procurava e abraçou-me.
Descobrimo-nos outra vez.
Dentro da ardência destas noites, ninguém é condenado e todos seremos salvos.

terça-feira, outubro 19, 2010

Cartas a M. - XVIII carta

Querida M.,



Anaïs Nin fazia todo o sentido quando descrevia no seu livro “ A Casa do Incesto” o cuspir do seu coração.
Na manhã em que se levantou para começar a escrever o livro, levantou-se e tossiu. Ao tossir saiu-lhe o coração pela boca à laia de vómito de carne.

Pois também eu queria poder cuspi-lo assim, livrar-me dele, fazê-lo sair. Os corações não são úteis, não fazem bem à saúde e normalmente fazem-nos sentir mais pequenos e mais sozinhos do que é suposto.

Se cuspisse o meu coração como ela, queria fazê-lo na sanita.

Ficaria alguns instantes a olhar para ele e a tentar recompor-me. Depois, com as duas mãos, procuraria desfazê-lo com os dedos e as unhas para me certificar com os sentidos que tinha acabado a razão da minha dor.
A segunda morte deste coração dar-se-ia por afogamento numa conduta de esgotos (teria de haver uma segunda morte porque um coração como o meu não morre à primeira).

Só desta forma teria a certeza que ele estava morto, como era suposto, e que nós
( eu e o meu corpo)
criaturas assombradas até à data, estariamos definitivamente livres.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Espelho - um breve texto roubado indecentemente a Luís Filipe Cristóvão

(é bom ter amigos a escrever assim)




"despeja o saco sobre a cama, a cama sobre o quarto, o quarto sobre o chão - enterrado na areia. despeja a boca sobre a mesa, a mesa sobre as pernas, as pernas sobre o infinito - desaparece. despeja a cabeça sobre ombros, os ombros sobre o tronco, o tronco sobre o terreno - preso na lama. despeja as sensações, as emoções, as razões, a falta delas - faz-te, finalmente, invisível. "

terça-feira, outubro 12, 2010

sábado, outubro 09, 2010

Cartas a M. - XVII

Querida M.,



O A. hoje encontrou-me aqui.

Ele já sabia - as pessoas vão sabendo- e abraçou-me com uma força estranha assim que me viu. Achei que me queria consolar, a minha intuição não me disse que aquilo não era para mim, que aquela força de braços não era para o meu corpo, era para o dele.

Contou-me que tem tentado sobreviver ao enterro de um bebé que a mulher ia ter. Passaram juntos o suplício do funeral de alguém que viveu com eles 6 meses numa barriga partilhada e bonita. Eu não vi aquela barriga crescer, nem tive oportunidade de conhecer a pessoa que lá estava dentro.E tenho pena. Mesmo.

Não sei o que se diz a alguém que perde um filho.
Os meus olhos engasgaram-se da mesma forma como quando soube que a tua mãe morreu; a minha garganta contraída de medo, sem nada para te dizer, e ao mesmo tempo a querer dizer-te tanto.
Cumprimentei a mulher do A. com a distância habitual mas apertei-lhe os dedos da mão com mais força na esperança que eles dissessem o que eu queria dizer: às vezes consigo que as minhas mãos falem por mim.
Reparei que tremia.

Convidaram-me para um chá. Eu aceitei.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Cartas a M. - XVI carta

Querida M.,

É como tentar andar outra vez e eu não sabia. Esta é a hora de colar peças atrás de peças sem pedir ajuda a ninguém porque ninguém as saberá colocar no sítio certo como nós. Nós sabemos o sítio certo das nossas peças e os outros não. Só nós. É um segredo puro que se usa no corpo à laia de apêndicite ou pé partido.

Amanhã estaremos juntas. E eu tenho tanta coisa para te contar.

quarta-feira, setembro 22, 2010

Tertúlias de Queluz com a escritora Inês Leitão




Dando início a mais um projecto para trazer os cidadãos a integrarem-se na sua freguesia, a funta de freguesia de Queluz vai iniciar um ciclo de pequenos encontros com algumas personalidades.

“Tertúlias de Queluz”, vão começar no dia 24 de Setembro pelas 21h na Sala Multiusos, Fernando Ribeiro Leitão.

Sala Multiusos Fernando Ribeiro Leitão
Rua dos Combatentes da Grande Guerra 40, R/C esq. - Queluz



Este primeiro encontro será uma conversa com a escritora Inês Leitão.

Quem é Inês Leitão?
Nasceu a 1 de Julho de 1981 em Lisboa. É licenciada em Estudos Anglo-Americanos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e gosta de viajar. Teve a sua primeira publicação na revista Quase, em 2001. Seguiram-se colaborações em Os Fazedores de Letras durante o ano de 2003. Em Maio de 2004 cria na blogosfera o bocadosdecarnepelasparedesdoquarto (www.bocadosdecarne.blogspot.com) e em 2005 inicia a sua participação no blog Prazeres minúsculos. O seu primeiro livro, Quarto Escuro (Livrododia Editores, 2007), é uma colecção de micronarrativas que fala de pessoas, de sentimentos e de apegos; coisas que tanto podem viver no instante de uma paragem de metro, como no limite da parede de um quarto escuro. Mantém-se inédita a sua Trilogia da Obsessão da dor e do amor. Três peças de teatro que falam do sentido do amor no século XXI: Quem tramou António Lobo Antunes, A última história de Werther e Amor em estado morto. Foi a mais jovem participante do Correntes d´Escrita 2007.

quinta-feira, agosto 05, 2010

Cadáveres adiados que procriam *

E hoje, isto tinha de ficar vermelho.




*(frase adorável roubada a Ricardo Reis e ouvida hoje pela boca dourada do meu querido amigo Tiago)

terça-feira, agosto 03, 2010

Cartas a M. - XV carta

Querida M.,

Vejo-te reagir.
Ver-te reagir é ver o mundo mexer-se aos poucos, como quem vai acordando daquele que foi (e talvez ainda seja) um sono profundo. 5 anos de um pesadelo profundo.
Temos assistido diariamente a pessoas conhecidas que morreram como a tua mãe: encarquilhadas pelo cancro (o A. Feio, o M.B. Resendes). E eles eram inteligentes e apareciam na TV, mas acabaram como a tua mãe, que era inteligente, bonita e não aparecia na TV. Morreram de cancro. Às vezes acho que temos medo de dizer a palavra toda, como se a palavra toda se pudesse concretizar em nós e acontecer-nos.

Sabes, M., ao contrário de ti e de todos os nossos amigos, eu nunca tive muito medo de morrer. Sempre que a morte me passa ao lado, eu aproximo-me dela e cumprimento-a com respeito. Talvez porque me sinto plena e cheia de sorte ou talvez também porque sei que um dia será a minha vez. Ao olhar para trás, nestes curtos 29 anos, penso que tive uma vida cheia de pessoas fantásticas e não podia ter recebido mais. É essa tranquilidade instalada que me permite dar-te colo e esperança quando tu não tens nem sentes nada: os meus ciclos abertos e fechados, gente perdida pelo mundo que todos os dias preenche a minha memória e os meus afectos, a minha consciência e os obstáculos que enfrento.
Ontem pensei em mim como uma estufa quente com vida própria e cheia de microorganismos(leia-se afectos ) altamente raros, únicos e dignos de uma análise cirúrgica.

Ontem vi-te rir. Não foi uma gargalhada: mas esteve quase lá.
E isso, M., really made my day.

quarta-feira, julho 28, 2010

Cartas a M. - XIV carta

Querida M.,

Estas cartas, um dia,acabarão.
Talvez não os nossos encontros na tua cozinha, nem as nossas saudades, nem a memória que fica do tempo que jogávamos ao elástico as duas
(eu, sempre tão descoordenada a tentar ser esguia e perfeita como as meninas que jogavam connosco, a tua mãe)

no ATL lá do sítio.



Estou a planear-te uma festa-de-anos-supresa. Daquelas que tu finges que não sabias e nós fingimos que tu não descobriste. Vou ter a cumplicidade do teu marido e dos nossos amigos. Tenho esperança, tenho uma enorme esperança que nesse sábado à tarde tenhas um minuto de distracção: uma quase-quase-quase alegria. Que no fim, pelo menos, possas sentir-te menos sozinha e um bocadinho mais feliz. Precisamos tanto de ser felizes, M. Precisamos, mesmo.

quinta-feira, julho 15, 2010

Cartas a M. - XIII carta

Fazes 26 anos.
Telefonei-te e desta vez atendeste. Imagino que tenha sido a pequena obrigação do dia. Falar com pessoas. Vê-las. Receber presentes.
Celebrar a vida com um morto às costas é coisa para adultos, M., e nós não crescemos assim tanto, crescemos?
Também tenho saudades da tua mãe. Saudades de saber que ela estava viva e talvez não saudades de estar, efectivamente, perto dela. Há uma segurança idiota em sabermos que as pessoas que amamos estão vivas, mesmo que não estejam perto, mesmo que não telefonem, mesmo que nunca tenhamos tempo para o tal café.

O tempo passa, M. Daqui a pouco faz um mês. E depois dois. E depois três. E depois chegam os anos e com eles dizem que chega uma dor meiga - o que quer que isso signifique.
De qualquer forma é claro.Um dia destes vais ter de deixá-la ir.

sexta-feira, junho 25, 2010

Cartas a M. - XII carta

Querida M.,

Não atendes os meus telefonemas nem respondes às minhas mensagens. Algo me diz que precisas de espaço e de tempo: eu vou saber dar-te os dois.

sexta-feira, junho 18, 2010

Cartas a M. - X carta

Querida M,.



Hoje a B. acordou-me com sms´s e eu disse-lhe que nos reuniríamos as 3 em breve.

Sábado estivemos juntas na mesa da tua cozinha, a expiar memórias sensíveis, a beber e a recordar a tua mãe. A carta que ela vos escreveu deu-lhe a paz que precisava para morrer e a vocês, matou-vos um bocadinho. Mata-vos sempre que a lêem.
Eu própria pedi mais vinho quando me estendeste o texto para as mãos porque não sabia – nem sei- como sobreviver a uma carta dessas. A tua mãe falava da felicidade com que tinha vivido: o nascimento dos filhos foi eleito o momento mais marcante e eu senti tanta pena de ti por teres ficado sem ela.

E a B. é mais forte do que nós. Ela não chorou.
Sei que gosto da ideia de esticar as pernas nas cadeiras da tua cozinha, ouvir-vos rir.

Acho que deves guardar essa carta muito bem guardada e um dia longe destes, deves mostrá-la aos teus filhos.

quinta-feira, junho 10, 2010

Cartas a M. - IX carta

Querida M.,

A tua mãe morreu. A esta hora, ela é uma sepultura branca, num pequeno cemitério alentejano.
Não existem palavras para verbalizar anos de conhecimento, de visitas e de partilha. E depois é este enorme vazio que não nos deixa falar e nos enrola os dedos e a cabeça.
Sábado estaremos juntas. Vou abraçar-te e vamos chorar o mundo.

segunda-feira, junho 07, 2010

Cartas a M. - VIII carta

Querida M.,

No fundo, isto é tudo uma pequena alucinação.

A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa. A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa.

quarta-feira, junho 02, 2010

O resultado do dia Mundial do Livro - 24 de Abril




"A escritora Inês Leitão veio à nossa escola no dia do escritor. Durante toda a semana andámos a ler e a conversar sobre o livro "Pitopeca em África- História de uma missão em Maputo" que fala da ida de uma menina, Pitopeca, para Moçambique onde foi ajudar os meninos doentes e deficientes que estavam no hospital das irmãs do Sagrado Coração de Jesus.

Estavamos todos muito ansiosos para fazer muitas perguntas à escritora Inês Leitão pois queriamos descobrir muitas coisas sobre a história e conhecer uma escritora famosa de livros.


Juntámo-nos todos no polivalente e ouvimos a história a ser contada pela própria escritora. Descobrimos que a escritora Inês esteve seis meses nesse hospital com as irmãs a cuidar dos meninos e que viveu muitas aventuras em África!"

sábado, maio 29, 2010

Cartas a M. - VII carta

Querida M.:

Ontem à tarde foi o funeral do Tio J.

Não, não erámos particularmente chegados, não tivemos uma relação especial, mas rimo-nos várias vezes juntos e a imagem que fica dele é a de um homem bom, um tio bonacheirão que fazia questão de pagar cafés, gelados, pastilhas e que no dia do casamento se sentiu feliz no meio de uma família grande que se erguia.

As filhas e a ex-mulher voavam como abutres sobre uma carniça frágil, morta, desprotegida, e era a sua mãe de 80 anos que protegia, em solo sagrado, o corpo morto da exposição aos animais.

Há, com certeza, uma relação privilegiada entre uma mãe e a pessoa que lhe cresce no corpo. E há, com uma certeza ainda maior, uma ferida de morte que se abre quando a própria morte leva a cria antes da progenitora.

A ideia que trazia sentada ao meu lado no carro era de que aquela mulher pequena podia perfeitamente ter entrado numa luta corpo a corpo com a morte, se isso significasse ter o seu filho de volta: fico com a clara impressão que podia ter sido ela a vencer.


E a tua mãe?
Pelo que sei vai-se aguentando. Estabilizou. Estabilizar é a palavra de ordem para os tempos que vão chegar.
Estabilizar. Para ti, para ela e muito curiosamente, para mim.

sábado, maio 15, 2010

Cartas a M. - VI carta

Querida M.,



Pouco sei de vocês.
A semana passada, antes de entrar em casa, estacionei e liguei-te. As coisas estabilizaram e isso deixa-nos felizes.
Isso deixa-nos felizes como quando vamos ver um bailado. O nosso corpo triste anda até à porta quando o espetáculo acaba e achamos que estamos felizes. Mas não estamos assim tão felizes, pois não? Nunca pensei muito nisto, mas os bailados sempre me deixaram triste a pensar que estaria feliz.







Mas tu e a tua mãe.
Não vos vejo há semanas e o fim do telefonema deixa-me assim: as pernas, as pernas angustiadas a caminharem depois de sairem do carro, a irem para casa.

Amanhã vou ver-te.

domingo, abril 25, 2010

domingo, abril 18, 2010

Cartas a M. - IV carta

M.,

Tenho falhado contigo. Deixei-te pendurada nos últimos dias e coloquei uma data de coisas acima do essencial. Hoje e sempre o essencial és tu e a tua mãe.




Não fui na segunda-feira.
Não fui na terça-feira.
Nao fui na quarta-feira.
Não fui na quinta-feira.
Não fui na sexta-feira.
Não fui no sábado nem vou hoje.

Mas tu dizes-me que ela está bem melhor.

sábado, abril 10, 2010

Cartas a M. - III carta

10.04.2010




Querida M.


Está um dia bonito.
Sonhei que estávamos no Alentejo, na tua casa. Tenho pensado na tua mãe e no sítio onde ela está. A Casa de Saúde das irmãs tornou-se, nestes últimos anos, um ponto de refúgio e de criação. As doentes são para mim, motivos de textos e de pensamentos. Mas os cuidados paliativos e a sua área nova mostram um mundo que eu havia esquecido. O fim. O nosso.
A morte nunca me assustou, a sério. Não a minha.

Vou ver a tua mãe hoje. Vou trazê-la para o jardim, custe o que custar.
E vou ver onde é que posso arranjar presunto a esta hora da manhã.

I.

quinta-feira, abril 08, 2010

Cartas a M. - II carta

05.04.2010



Querida M.,


A tua mãe está magra e cansada e eu levei-lhe flores amarelas do Lidl.

Vinha tarde do trabalho e o Lidl estava aberto. Agarrei nas primeiras flores que encontrei, pensei que devia trazê-las todas para a tua mãe ter um quarto feito de flores, estilo rainha.



Ela gostou. Tu gostaste.

Entrei pelo portão de ferro e um enfermeiro jovem indicou-me o quarto certo. E ficámos lá as três, sem perder o ritmo de uma conversa que se fez doce de saudades. Falámos do dia do teu casamento, como estavas bonita - eu fui a primeira a chegar para te abraçar- como o Alentejo te deu um tempo feliz e foi tudo tão perfeito. E ali éramos nós: 3 mulheres de idades diferentes a falar do mundo, da vida, de como a tua mãe vai regressar rapidamente a casa. Casa. Notei que ela quer muito ir para casa.
O teu irmão vem de manhã, o teu pai à tarde, tu à noite. E ela está farta de vos ver dormir no sofá.
Dizes em cada 2 minutos que isto vai acabar rápido, que ela vai ficar só uma semana e depois fica boa e vai para casa. Eu sei que sim.
Eu sei que sim.

sábado, abril 03, 2010

Cartas a M. - I carta

03.04.2010






M.



Amanhã vou ver a tua mãe. Vai ser a primeira de muitas visitas que lhe pretendo fazer, por variadíssimas razões. A primeira de todas é porque me quero despedir dela antes que o cancro a leve definitivamente e eu não tenha tido a oportunidade de lhe dizer ao ouvido que gosto dela e que ela me parece a alentejana mais bonita que algum dia conheci. Todos os dias que seguirem o dia de amanhã, vou confessar-lhe a pés juntos, que ela me parece cada dia melhor

(está nos cuidados paliativos)
Cada dia mais bonita

(cuidados paliativos)
Cada dia mais forte

(paliativos)
e que vai sair dali rapidamente para voltar para casa




Este blogue vai virar um diário. Aquilo que sinto em relação à escrita mudou, M. Mas nós nunca falámos sobre a minha escrita porque sempre tiveste vergonha daquilo que eu escrevo e hoje não é dia de falarmos disso. Queremos falar de ti. Da tua mãe. Preciso falar de ti, da tua mãe, da forma como ela nos está a morrer nos braços e da forma torta como me sinto pequena e incompetente para vos salvar às duas.

Era isso, M.. Queria salvar-vos.

sábado, fevereiro 27, 2010

Pitopeca



Ontem foi por ti, sabias? Foi por ti que fui à escola, precisava muito de te conhecer.
Assim que entrei e vos vi, precisei de saber quem eras tu.
Já sabia tudo sobre ti antes do meu corpo conhecer pessoalmente o teu; tinha pensado numa estratégia a ser executada assim que entrasse na tua sala e fiz com que todos os teus colegas dissessem o seu primeiro nome,

-Margarida

-João

- Tiago

até chegarmos a ti. Era a ti, Ana, era o teu corpo pequeno quem eu queria tocar.






Foi quando tu disseste
- Ana



que eu soube que tinhas chegado:alguma coisa dentro do meu corpo rebentou.






É a tua família, não és tu.
Não devia ter sido assim. Todos os corpos pequenos deviam nascer em braços seguros de bem-estar: custa-me saber que fazem isto contigo todos os dias, que basta acordares ou fazeres uma pergunta na hora errada. És uma pequena escrava de 8 anos.

Sabes, Ana, a verdade é que nem o meu livro nem eu temos qualquer significado ao pé de ti. O meu livro não é absolutamente nada ao lado da vida que tens e foi por um triz que eu não disse
- o meu livro não é nada disso, meninos, o meu livro não é




quando todos vocês souberam falar tão bem de cada linha da minha história: as personagens, o enredo, o lagarto que só tem um dente na boca, os tachos que voam, os peixes gordos do lago.
Falaram deste livro como se fosse a única história do mundo
- a Guilhermina existe mesmo?



e eu fosse a rainha de copas, numa cadeira azul, no meio de uma sala demasiado quente para o meu corpo cheio de uma febre usurpadora
- eu nunca salvei ninguém como tu: disseram-me que costumas salvar a tua mãe ou um dos teus irmãos de serem batidos; costumas fazê-lo com a coragem do teu pequeno corpo







Hoje sonhei contigo, miúda. Sonhei que tinhas gostado mesmo dos chocolates e do livro autografado. Sonhei que te lembravas de mim, do meu sorriso parvo parado em ti desde o momento em que disseste
- Ana


sonhei que tinhas vindo cá para casa morar e tinhas um quarto, uma cama, roupa de verdade, livros e cadernos novos: eu tinha-te salvo daquilo.

O mundo não é justo, Ana, aprendeste isso cedo de mais. Não era altura. Era tempo de teres barbies e poderes mostrá-las às tuas amigas quando fossem lanchar a tua casa. Devias lanchar todos os dias. Devias brincar (não passar a ferro), devias ter os óculos que precisas para aprender a ler, devias ser admirada pelos teus pares (não vítima de um bullying constante que dinamita a tua auto-estima e te vai fazer crescer insegura e desconfiada): este era o tempo de seres realmente feliz.




Volto em Abril à tua escola. Tenho o dia marcado a verde na minha agenda. Diz ANA.

sábado, fevereiro 20, 2010

Para quem viu o filme e se apaixonou pelo poema como eu...

Invictus




Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

William Ernest Henley